Mamão

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Compras, sim.  Corredores, produtos, filas e burocracias.

Frutas, sim. Posso pegar um mamão. Perco a conta das vezes que sempre repito o ritual de lembrar um arquivo, na hipocrisia interior de dizer a mim que havia o esquecido. Mas qual o mal em lembrar de alguém de vez em quando?
Não era tão errado. Mamão, Cah.

Sentir clima frio chocar-se com o mormaço de fora de um mercado na saída é uma experiência sempre saborosa, fazemos isso desde nossa meninice.

Tudo ficou bem melhor quando retornei ao silêncio de um apartamento pequeno. Tranquilidade depois de uma manhã corrida.

Sou eu novamente. Solitário em um canto solitário. Não me incomoda e posso sobreviver assim por toda a eternidade.
Por todos os momentos solitários que eu quis alguém perto, nunca houve ninguém depois da infância com Cah. Hoje não machuca mais. Espreguicei o preguiçoso corpo e frasco (frágil?).
Sorri para meu cacto na janela e ele também ficou feliz em ser notado após longa temporada. Na pia, eu observava o mamão. Em tons amarelados e esverdeado. Estava delicioso para os olhos, saberíamos melhor depois de prová-lo com a boca. Poderia ser uma coisa tão comum, mas era um grande acontecimento. Prete atenção e observe essa faca branca. Brilho e a alimentação de um vácuo mental com lembranças.

Pela janela, a vitalidade solar entrava e realçava a minha cor. O relatório era sempre o mesmo, "você precisa de sangue ou vai morrer". Anemia? Nunca me preucupei com supostos problemas de saúde até eles serem mais reais possíveis. Arrogância minha comigo mesmo.
Terminei a reflexão sobre minha arrogância e dediquei a atenção novamente ao mamão. Mamão novamente voltando a ser desejado pela faca que vagarosamente partia-lhe ao meio. A "carne" vermelha parecia tão deliciosa que me fez babar em um instante antes de uma pequena frase invadir minha mente:
"Um assassino de frutas".

Era sobre o arquivo que vem quando mamões estão em cena. Sobre o Cah que cada momento volta a ser tão real e real, me fazendo esquecer que eu ainda tenho orgulho o suficiente para continuar o repulsando.
•••

Novinhos na época, como as folhas molengas nas pontas de galhos de árvores. Épocas boas que relembradas não trazem alegria e sim tristeza por não existir uma maneira de voltar a elas.

Estava feliz naquele dia, mas além disso, com calor. O Sol fervia e estralava as folhas secas debaixo das árvores, vento abundante agarrava as folhas e dançava até nossos olhos cansarem-se de acompanhar. Era o verão, boa estação para o senhor que vendia coisas refrescantes em frente à escola, época boa para Cah e eu darmos várias visitas ao igarapé remoto de um terreno antigo.

O calor me expulsou de casa. Não tinha coisas interessantes para se fazer lá dentro. Cah mantia-se entretido lendo uma revista velha de piadas não recomendadas para nossa Idade, naquela época. Jogado no chão frio e parecia não estar mais aqui. Deixei-o ali em sua felicidade frenética e tão doce de observar.

Dirigi-me ao quintal. Lá fora aonde o vento era gostoso e conforme você estivesse em paz consigo e satisfeito a intensidade de calmaria se tornaria angelical, sugerindo um pequeno instante desligado do mundo e ligado a outro. Era assim, essa lembrança me trás tantas energias boas.
Repousei a costa no tronco de uma mangueira. Manuela, assim a apelidamos. Manuela e eu, parados por tempo considerável. Observava as nuvens alvas. Elas vinham e iam. Moldadas ao querer do vento e constantemente formas novas aparecem. Qual seu destino final?
Há também, o Sol, que afugentou o pobre Leonardo da sua casa. Há também o pequeno leitor de piadas adultas, pelo qual Leo mantém uma confusão impossível de resumir nessa época de Sol quente. Também posso mencionar Manuela, que naquele momento sentia-se muito bem acompanhada.

Pensar nisso é bom. Pensar no quão bonito é a infância e todos os momentos laranjas desse arquivo. Todos os momentos quentes e felizes. Não seria melhor entrar nessa lembrança e se trancar. Um loop temporal de presente, eu agradeceria.
Momentos de êxtase em que me prendia no mundo da Lua são sempre as melhores partes das lembranças. Embora houvesse quem criticasse meu comportamento às vezes calmo demais.

Cansado de nuvens, em breve estaria adormecido. Um corpo infantil e mole destacando-se no quintal, assim eu penso em quem me viu no instante que apagaram meus olhos.

De volta, eu fitei um mamoeiro. Foi exatamente a primeira cena que veio ao despertar. A raiz da lembrança. O motivo de narrar todo esse pequeno arquivo.

Vi o fruto. Amarelado, nítido. Chamou atenção demais para mim. Em um impulso eu estava em pé e decidido. Corri em sua direção. Me sentia um ninja. Mirei perto o mamão. Rápido demais.
Quando perto eu admirei tanto que perdi a noção do calor do Sol. Novamente tendo ciência do calor eu movi o braço para pegar o fruto. Proucurei expectadores, mas só havia eu por perto do mamão. Seria eu quem apreciaria a cena tão interessante de apanhar aquele mamão.
Importante momento, eu girei o mamão vagarosamente. Ele suportou até onde conseguiu, mas soltou-se da árvore mãe. Solitário e destinado a ser devorado. Deveria ser dolorido, pensei.
Um líquido saiu do talo. Espesso e branco. Lembrou outra coisa. Leite? Tudo bem ter ficado só nessa conclusão. Seria o sangue dela? Na verdade isso aparentava outra coisa. Após essa última conclusão percebe-se que eu não era tão inocente assim.
Poluição mental.

Com o fruto nas mãos corri de volta para casa, rindo bestamente sem parar. Ria pelo feito quanto pela última conclusão feita. Cah, ele precisava participar disso.

— Cah! Cah, vem aqui! Rápido!!!

Berrei isso apenas uma vez. Cah respondeu ao meu chamado prontamente. Entusiasmado igual a mim, mesmo sem saber o porquê de eu estar tão feliz.
Quando surgiu na cozinha da casa, aonde eu estava, ele não precisou de sete segundos para entender sobre o mamão nas minhas mãos.
Reagiu espantado inicialmente, mas logo seus olhos brilharam tão forte que desconfio de uma sabotagem mental. Sua postura encurvada para ver o mamão é tão divertida. Entreguei a ele o mamão, busquei uma faca e logo surgiu a cena também memorável de cortar o pobre mamão.
Satisfatório demais para nós dois. Predi a respiração enquanto cortava. Cah me olhou com um olhar tão engraçado, sugeria malignidade também.

— Você... Seu assassino frutas!

Caímos em profundas gargalhadas. Meu pai observava a cena e quando o vi ele também não conteve suas risadas.
Eu, Cah e meu pai comemos aquele mamão. Considerei que nós éramos psicopatas.
Meu pai corrigiu: "cereais killers".
•••

Cah ficaria feliz com esse mamão agora. Eu estou sozinho e comer ele é lembrar de Cah. Percebo que Cah e Cah está sendo frequente nesse resto de dia.

E todas essas lembranças constantes me julgam está perdendo qualquer rumo certo que poderia existir na minha mente. Eu digo a mim que não quero vê-lo, mas o que eu sinto hoje e nesse momento é saudade. Vou poder fingir que isso não é real, que não é relevante, mas a verdade é que não dá pra continuar mais forçando a barra.

Ora, o verei logo, formalmente e oficialmente.

"Um final de semana, pode ser?"
Domingo, bem, eu poderia ter opinado outra data, talvez no mês que vem.
Não podia dizer "agora mesmo, eu não me importo se você vier jantar comigo  hoje mesmo"; como também não podia recusar com uma parte de mim dizendo que eu deveria mudar de cidade enquanto podia para evitar.

Parte da minha vida fica ligada a ele, mesmo por anos e anos eu mantendo isso em hibernação. Tudo bem, mas se aconteceu eu prefiro que aconteça tudo que corrija meus erros ou que tudo seja um erro pela eternidade.
Eu fico feliz também, por um encontro assim. Estar indo de um ponto ᗩ para um ponto ᗷ.
Nosso ponto ᗷ é continuar a amizade como nos velhos tempos e acertar todo que não está esclarecido.
Por favor, Cah seja paciente comigo se eu não conseguir me tranquilizar.

Pensar nesse suposto encontro me deixa com um gosto amargo de ansiedade. Vulnerável a todas as declarações que podem ser decepcionantes ou esclarecedoras demais.

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