Era uma vez uma menina que tinha medo de enlouquecer. Infelizmente, a loucura tinha planos sombrios para ela.
O cheiro de terra molhada e o som forte da chuva caindo traz a sensação de que o tempo passa de forma lenta dentro daquele carro. Gael dorme no banco ao lado e a saliva que escorre de sua boca molha minha mochila, que infelizmente foi usada como travesseiro pela falta de um. Barnabé, o gato preguiçoso adotado por ele descansa na caixa de transporte ronronando em sonhos doces e mornos. Meu pai mantém a atenção em dobro na estrada até o lugar onde passaríamos as férias. Ao menos ele chama de férias. Meu irmão ainda jovem e ingênuo acredita nessa palavra, mas eu não. Papai está se livrando de nós, pelo menos por um tempo.
Desde a piora no estado da nossa mãe, meu irmão e eu somos um peso para ombros já cansados. Olho para meus dedos, tenho cinco dedos em cada mão e pé, totalizando vinte dedos. É uma quantidade boa, nada exagerado ou escasso. Então, eu os conto. Conto meus bons vinte dedos.
Depois de mais algumas horas, ou melhor, de alguns dedos contados, o carro finalmente passa pelo enorme portão de ferro enferrujado. Esse lugar acende diversas memórias de infância, há uma árvore enorme e talvez até mais velha que a própria casa no caminho enquanto passamos de carro. O pequeno balanço ainda está lá, balançando por causa do vento. Bons tempos, quando pílulas e crises não existiam. Ou ao menos se escondiam muito bem.
Mais adiante passamos pelo laguinho que costumava pescar com meu avô, nunca consegui pegar um peixe de fato, porém a diversão compensava o fracasso. Quando o carro estaciona em frente a casa antiga. Desço dele, tentando ao máximo não cair nas poças de lama deixadas pela chuva e sinto os braços da vovó me apertarem em um abraço quase sufocante assim que alcanço a varanda. É um abraço de consolo, sei disso, um consolo disfarçado de saudade. Como se meros braços cruzando meu dorso pudessem melhorar as coisas, mas aceito sem reclamar, não é culpa dela.
— Kieza, minha pequena cresceu tanto, na última visita ainda tinha dentes de leite na boca.
— Olinda, deixe a menina respirar! Eles acabaram de chegar, devem estar exaustos pela longa viagem. Entrem, preparei algumas guloseimas para vocês — Aura, me puxa para dentro do casarão. Os cabelos brancos assim como os da minha avó estão presos em um coque e seus óculos com as pontas pontiagudas combinam com sua personalidade mais rígida.
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Epopeia das Sombras
FantasyHá um demônio na floresta e ele aguarda faminto e perverso. Kieza carrega um único medo atrelado em sua carne e preso aos ossos: enlouquecer. Mas parece que a loucura tem planos sombrios para a garota. Quando acorda em um mundo desconhecido e mágic...