II. Os Veados Reais e o Bosque Esmeralda:

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Quando você tira uma fera marinha da água, ela começa a feder

Todas as noites sempre pareciam iguais em Império de Sal. A ilha era coberta por um manto estrelado mais bonito do que todas as joias reais da Corte Solar. Não que tivesse conhecido tal fato, mas a fama de Deserto Dourado precedia sua localização árida.

— Está dormindo? — Algumas batidas na porta me fizeram levantar das cobertas. O clima era agradável no outono da Ilha, mas estava tão desesperada por me sentir uma última vez parte daquele mundo que não recusei a segurança das cobertas.

Antes que pudesse responder, Navhir meteu a cabeça para dentro do cômodo e assim que nossos olhos se encontraram, um suspiro escapou de seus lábios grossos.

— Não consegue dormir? — Perguntou, fechando a porta atrás de si.

— Parece que não sou a única.

E compartilhamos um sorriso torto, nitidamente maroto e - às vezes - até perverso, marca registrada dos Snay.

Navhir se aproximou da cama, aqueles orbes verdes eram um lembrete do quanto o oceano podia ser bonito e elas me estudavam cautelosas. Ao se sentar, sua mão apoiou no meu joelho por cima do cobertor.

— Meu pai mandou preparar uma arca digna de uma rainha para você. Se eles esperam uma selvagem em Bosque Esmeralda, vão se deparar com uma digna herdeira do Trono Oceânico.

— Eles esperam um pirata... — Gentilmente, coloquei a mão sobre a dele. Meus dedos pareciam minúsculos diante daquele dorso alongado. Navhir sempre foi alto e seu corpo esguio lhe dava uma agilidade difícil de acompanhar.

— Então, temos que entregar uma Capitã. — Por muito tempo, permiti-me encarar o primo em silêncio e ele nada fez para quebrar aquela condição. Mas, era nítido que algo o perturbava. Conseguia notar os sinais de tensão no maxilar travado e na forma como sua testa suava de leve. — Um dia vou ser rei, Amrella... — Finalmente, sua voz ecoou feito uma carícia no ar noturno, grave e aveludada. Para um jovem de pouco mais de quinze anos, o príncipe colocava uma segurança invejável naquelas palavras. — E colocarei fogo em cada árvore, matar cada veado inútil até conseguir te trazer de volta.

Sua devoção me engrandecia ao mesmo tempo que preocupava. Sabia qual era meu dever com ambos os Tronos, Oceânico e de Carvalho, além do reflexo que uma ação egoísta poderia ter nos sete reinos da Nação. Mesmo assim, saber que Navhir era contra tudo aquilo fazia uma pequena chama crescer no coração, aquecendo todo o corpo.

Os orbes negros pousaram em uma pequena escultura de madeira sobre a mesa de cabeceira. Um cervo robusto talhado sobre uma rocha me observava com seus olhos esmeralda. Esse foi o único presente que recebi do meu pai ao nascer e também a única coisa que Narissah trouxe de Bosque Esmeralda.

A canhota vai até a superfície fria quase que por instinto e eu trago o animal para o colo, sustentando seu peso entre os dedos.

— Talvez isso seja o que o Velho Cego escolheu para mim.

— Bobagem! Porque ele tiraria nossa proposta mais promissora de navegadora e jogaria no meio daquele bosque fedorento? — Sua irritação era tamanha que conseguia ouvir o ranger dos dentes do loiro. O cabelo sem as características tranças no alto da cabeça lhe caia em fios oleosos sobre o nariz torto de muitas brigas e Navhir insistentemente os mandava para trás em movimentos rápidos com a cabeça. — Porque você não se esconde? Arrumo uma desculpa, te mantemos no escuro por umas semanas até eles se convencerem que você morreu e aí...

Existem momentos na vida em que alguém toma uma decisão que muda todo o curso da história, nesse caso, quando agarrei a cabeça do príncipe pelas laterais do rosto e eliminei a distância entre nossos corpos, sabia que estaria abrindo uma lacuna na minha história para sempre.

Sal e Sangue: A DescobertaOnde histórias criam vida. Descubra agora