Inferno

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– Caralho! – Deixo escapar. Na minha humilde opinião, essa é a maior desvantagem de ainda morar na casa da sua mãe: não xingar em paz.

– Luz! Pelo amor de Deus, deu pra te ouvir do outro lado da rua, garota! – Eu totalmente antecipei esse berro na minha cabeça.

– Desculpa! – Gritei de volta – Puta que pariu!

– Luz Noceda, mas que diabos... – Ela abre furiosamente a porta do meu quarto e de repente pausa sua sentença. Talvez porque o lugar estava uma zona de guerra, eu reconheço que sou meio bagunceira, ou seria porque ela notou que eu não saí da frente do computador desde que ela começou o plantão no hospital, isso foi ontem, aliás. Ou os dois, não sei.

A encaro de repente após tirar o headset da cabeça, derrotada e com ódio no couro. Uns três pacotes vazios de Doritos, uma lata de energético e um resto do miojo que eu estava comendo estavam apoiados na mesa do meu setup, pude ver o desgosto estampado na expressão dela.

Pelo canto do olho consegui checar meu semblante no espelho do guarda-roupa. Nossa, dupla derrota, minhas olheiras estavam tão escuras que eu quase achei que tinha passado alguma máscara de argila e esquecido ela na minha cara.

– Filha, você passou o fim de semana inteiro na frente do computador? – Minha mãe me olha preocupada.

– Então, acho que inteiro é um exagero, né? – Tento contornar a situação com meu péssimo humor, apenas para distraí-la dos pensamentos sobre como a minha vida social é um caso perdido, infelizmente, ela não está errada – Tipo, eu tirei o lixo e tal.

– Tirou nada porque lixo é o que eu tô vendo aqui na minha frente, por favor arruma esse quarto – Ela diz, sarcástica e após um longo suspiro – Eu trouxe jantar, vem comer alguma coisa de verdade antes que você caia morta por falta de nutrição e excesso de cafeína.

Sorrio em resposta e me levanto, não sem antes de me despedir da Vee, minha única amiga, obviamente, porque é de mim que estamos falando, ela mora bem longe e a gente se conheceu no Discord. Para a minha mãe, é uma incógnita o fato de eu não ter nenhum amigo, acho que é porque ela é a minha mãe e na visão dela talvez eu seja perfeita, mas de verdade, eu sou tão extrovertida que cansa, as vezes até eu me pergunto como isso é possível, tento evitar esses pensamentos, são meio depreciativos.

O jantar foi normal, minha mãe me contou dos perrengues do hospital e eu agradeci mentalmente a seja lá o que for que rege esse planeta por não ter me feito um ser de biológicas. Sério, só metade das coisas que ela me contou me fizeram quase perder o apetite. Eu contei a ela do anime que eu maratonei e ela fingiu entender, como sempre. Eu amo que mesmo sem compreender quase nada, ela sempre me escuta.

– Ah, eu vou ficar até a noite amanhã na faculdade, não me espera pro jantar – Digo juntando as louças e levando-as até a pia – Tô trabalhando no projeto do fim do semestre. Que bom que nos cursos de artes a gente tem a esperança de não ter prova final, só um super trabalho sugador de almas.

– De qual matéria? – Ela me escuta interessada, guardando as sobras na geladeira.

­– Direção audiovisual, comecei a fazer um curta em stop motion, acho que vou morrer tentando.

– Tudo bem, cariño. Só não vai se esforçar demais, ainda falta bastante tempo para o fim do semestre, relaxa ­– Ela vem até a minha direção, segura meu rosto com as duas mãos, desviando minha atenção da louça que eu estava lavando e deposita um beijo na minha testa – Que tu ángel de la guarda te cuide y proteja.

Respondo com um sorriso fraco e logo encaro a cruz que ela carrega no pescoço. Camila Noceda é uma mulher de fé. Já eu? Não tenho fé nem em mim mesma e no máximo rezo para a minha deusa Doja Cat de vez em quando.

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Quando eu era criança, minha mãe queria que eu fizesse catequese – para os que não cresceram em lares católicos, a catequese é quando você vai na igreja todo sábado, ou domingo, sei lá, a minha era no sábado, aprende sobre a bíblia e tal, e no final você fica liberado para comer aqueles pãezinhos sem sal na missa, basicamente ­– e eu fiz, por ela, não me importava de ir e não me importo de ir na missa com ela até hoje, mesmo não sabendo exatamente no que eu acredito ou se acredito, fico feliz que a minha mãe acredite. 

­– Te amo, mãe. Boa noite – Digo enxugando minhas mãos e indo em direção ao chiqueiro vulgo meu quarto, segurando um saco de lixo.

­– Boa noite, filha – ela me puxa para mais um beijo na cabeça antes de mudar completamente seu tom de voz – E não vai ficar acordada até tarde, essas tuas olheiras estão me dando sono só de olhar!

Deixo uma risada escapar enquanto caminho até meu quarto, fechando a porta atrás de mim. Tive que conter um grito desesperado quando olhei para a minha frente. Era... um homem?! Ele tinha cabelos longos e escuros, mandíbula definida, para combinar com os músculos do seu abdômen exposto. Seu sorriso no canto da boca fez minha coluna estremecer.

Quanto mais ele se aproximava, mais eu processava informações. Como sobre o seu cheiro, que era o exemplo perfeito do conceito social de masculinidade: madeira, couro e uísque caro. Notei que ele usava um anel com uma pedra vermelho sangue. Suas mãos pareciam que foram feitas para caber exatamente na minha cintura. Por que eu imaginei isso?

Ele me olha com uma expressão indecifrável. Tudo se movia extremamente devagar, como num filme. Lembro do meu último pensamento concreto ser sobre as calças que ele usava, tinham uma corrente pendurada no lado direito. Tive certeza que aquela era aparência exata do Corpse Husband, e ele veio até a minha casa se declarar para mim.

Ele finalmente me alcança, sem dizer uma única palavra e minha cabeça fica mais pesada do que já estava, sinto que vou desmaiar. Ele toma minha cintura, comprovando minha teoria em relação à suas mãos. Seus cabelos caem pelo meu rosto enquanto ele me encara de cima. Que homem alto, deve ter pelo menos dois metros de altura. Fecho meus olhos vagarosamente enquanto ele se inclina, depositando um beijo quente em meu pescoço, depois disso, o nada.

Acordo de repente com o barulho do despertador. Quê? Eu nem lembro de ter ido dormir... e aquele homem... porra, eu preciso urgentemente parar de ler fanfics até de madrugada. Quero me levantar, mas não consigo. Sinto meu corpo extremamente cansado, como se tivesse tentado escalar o monte everest em trinta minutos.

Com muito esforço, consigo me pôr de pé, me encaro no espelho, ainda estou com as roupas de ontem à noite. E tem um... hematoma no meu pescoço?! Dou um pulo para trás com o susto, não sei como tive forças para isso. O meu ouvido zumbe, meus músculos doem, minha visão fica turva e um gosto metálico invade minha boca, tudo isso ao mesmo tempo e ficando gradativamente mais forte.

Respiro profundamente e sigo cambaleando em direção ao banheiro, tento me olhar no espelho de novo, mas meus sentidos estavam me enganando. Estou tão exausta. Imagino que talvez seja abstinência de energético ou sei lá. Mas essa marca? Será?... Não.

Minha vitalidade aumentou de zero para uns dez por cento após o banho, mesmo sentindo que eu estava carregando um elefante nas costas, tentei ignorar o máximo possível. Meu dia estava cheio, preciso segurar a barra. Mais cinco por cento depois do café. Ok, vai dar tudo certo.

Minha aula só começa a tarde então eu tinha um tempinho sobrando para fazer um quase zombie walk pela cidade. Preciso comprar algumas tralhas para o meu projeto. Afim de testar minha teoria inicial, pego um energético na geladeira antes de sair, talvez eu morra.

O Livro das Sombras [AU Lumity]Onde histórias criam vida. Descubra agora