Atiennys I

3 1 0
                                    


Por mais que gostasse tanto assim de servir a Sua Senhoria, Atiennys era reticente em dar a mesma atenção que sua senhora aos humanos — principalmente homens humanos. Mesquinhos, ambiciosos e invejosos além da conta; era realmente atípico que uma raça inteira fosse assim e não conseguisse ainda se levar à extinção.

Mestiça, ela sempre viveu no limbo entre ambas as raças, humanos e os elfos da linhagem do Sul. Dos elfos, via muita pena e condescendência, como se fosse uma pedinte eterna por ser como nasceu. Dos humanos, uma quase subserviência e inveja oriunda dos que moravam na mesma vila — vila esta que Atiennys deu as costas havia tantos anos, deixando seu passado lá, junto da lápide da mãe.

Procurou tutoria da arte do arco por parte dos sacerdotes élficos de Atthys, Deusa dos Arcos e dos Arqueiros. Mas a insistente mania de agir com pena e sentimentos de mendicância para com ela a afastou dos mesmos. Procurou, então, qualquer outro sacerdote da deusa, encontrando um que lhe aplicou os ritos de entrada na ordem, tornando-a uma devota abençoada, alguém que dava mais atenção aos deuses que meros camponeses e povo comum, ganhando assim uma fagulha de poder da deusa.

Treinou até os dedos tornarem-se calosos, duros e fortes e os braços tão resistentes quanto. Seu tutor, um nephilim, deu a ela o primeiro arco quando anunciou estar pronta: já não havia nada a ensinar-lhe, era uma atiradora nata.

Das aulas, aprofundou-se na disciplina da caça e dela correu atrás daqueles que tiraram o sol de sua vida. Um por um, os homens que tocaram em sua mãe foram caçados. O intervalo das caçadas era caótico, instigando medo no coração dos responsáveis. O último, para sua infelicidade, tirou a própria vida, desesperado que o encontrassem.

Depois desse dia, percorreu Südland inteiro sem rumo. Incorporou inúmeros grupos, de mercenários a aventureiros, passando por guardas e escoltas. Nenhum era o que a interessava.

Esta apatia chamou de alguma forma a atenção de Sua Senhoria. Mostrando-se como uma jovem aparentemente humana, tinha a pele clara com algumas sardas douradas marcando a pele. Os olhos eram de um violeta intenso, também salpicado de ouro. E os cabelos, mantidos em ondas perfeitamente juntas, eram de um ouro intenso, quase brilhante.

— Pequena bípede, o que a incomoda? — perguntou a menina.

— Por que deveria eu responder uma criança humana? — respondeu quase irritada. — Carrego sangue élfico em mim e viverei mais que você. Quando olhar para mim novamente, estará com a prata domando o ouro dos seus cabelos.

A menina apenas sorriu, quase como se ela — e somente ela — entendesse uma piada boa demais para Atiennys saborear. Andou até a mestiça, transmutando sua imagem. De sua aparente década de vida, envelheceu até tornar-se anciã e rejuvenesceu mais uns tantos anos, tornando-se um bebê que, para o espanto de qualquer um (Atiennys inclusa), andava com a desenvoltura de uma adulta. Mais dois passos e tornou-se mulher, alta, bela, curvilínea e imponente, como uma rainha humana, só que, se possível, mais resplandecente e poderosa.

Aturdida com a aura que exalava do corpo da adulta diante de si, Atiennys ajoelhou-se, quase se prostrando. Olhar para ela era como ver uma deusa, uma encarnação da beleza e do poder em forma humana — não, em forma bípede.

Respirou uns poucos fôlegos e entendeu quem estava diante dela quando os olhares se cruzaram e as safiras cristalinas da mestiça se prenderam nas ametistas escuras da mulher.

— Perdoe-me, Sua Senhoria. — disse em tom humilde, ensaiando o prostrado. — Minha ignorância não justifica minha insolência para com a Senhora.

A mulher sorriu, emanando uma luz de ouro tal qual seus cabelos, aconchegando a meio-elfa.

— Senti sua dor, menina. — falou a mulher em voz suave. Tão suave que a seda élfica mais perfeita seria tida como lixa se comparada. — Já vivi assim, amargurada e vingativa.

          

Ao se olharem novamente, a face divina da loira estava marcada com dedos longos e purpúreos correndo as bochechas e a linha da mandíbula, acumulando-se ligeiramente na ponta do queixo. Tal visão, tão bela e triste, fez Atiennys derramar umas parcas lágrimas, acumuladas perto uma da outra quando bebidas pela floresta.

— Ofereço a ti, menina, meu patronato. Seja minha agente, traga justiça às Terras do Sul e darei a ti o amor que tanto procuras.

— Juro, pelo arco da deusa a quem rogo e do Pai Criador, da raça cujo sangue corre em minhas veias, que eu, Atiennys, serei tua serva. Honrarei teu nome, renegando àqueles que forçaram a minha vinda a este mundo. Viverei pelo nome de minha mãe e minha patronesse.

As palavras proferidas pela mestiça ecoaram nas matas, silenciando até mesmo os menores animais. A mulher andou graciosa, ficando a um meio esticar de braço da testa de Atiennys, ainda ajoelhada em prostração.

— Olhe para mim. — ordenou a mulher em tom solene.

Encarando as ametistas, a meio-elfa sentiu a radiante aura de realeza, fosse a sua força, fosse a sua presença. Esticou o dedo médio e tocou com a ponta da unha no meio da testa de Atiennys, encarando-a naquele olhar tão solene quanto à voz.

A mente da mestiça inundou-se com informação e visões, entendendo o que era aquela aura que ela tanto sentia e quem era aquela figura misteriosa.

Dreka-Rham uthraz rax-kzhan, mexr zeruhr. — disse Atiennys em dracônico fluente, sentindo o idioma mais antigo lhe arranhar a garganta.

Dreka vhrarr zer kruurh. — a mulher respondeu. Mesmo verbalizando o áspero idioma, a seda da voz não se abalou, sendo infinitas vezes mais suave que Atiennys e seu sangue humano tocado pelo élfico.


Oops! This image does not follow our content guidelines. To continue publishing, please remove it or upload a different image.


E lá estava ela, ainda pensando no dia em que a Sua Senhoria a tomou como sua agente. Desde aquele dia, sua vida pareceu mudar como na alquimia do chumbo ao ouro. Encontrou sua amiga, hrein, quando ainda filhote era, abandonada forçadamente pela mãe morta num embate com uma matilha de lobos.

Após hrein crescer e acompanhá-la em suas missões, Atiennys ficou conhecida como a Caçadora, a agente da entidade conhecida apenas como a Senhora d'Ouro, ou ainda, somente Senhora.

Com seu século e meio de vida, já viu por demais da maldade humana. Não entendia por que a Sua Senhoria quereria tanto ver o clérigo humano, olhando para ele com aqueles mesmos olhos benevolentes que pousaram sobre si.

Era um garoto, um menino, com menos de vinte anos. Vestia-se como qualquer sacerdote humano: trajes simples, de algodão e linho não tingidos e botas de couro macio para o cotidiano. Sobre as vestes, um tabardo da ordem da Igreja de Ehriol em seus tons quentes de fogo, ouro e bronze. E acompanhando-o, uma figura no mínimo intrigante a ela.

Uma humana, também vestida naquelas cores sacerdotais. Alta, esguia e forte, mostrava aquela aura de poder num corpo talhado em ébano, aparentando ser esculpido pelas mesmas mãos divinas fizeram as árvores da raça de sua mãe. Pele lisa e suave, revelada apenas em partes singelas onde a armadura delgada permitia — braços, joelhos e o pescoço. Destoando da armadura, um par de braçadeiras de um aço escuro, mais que a pele que herdou dos povos do Oeste.

Surpreendeu-se com o arco de dupla curvatura que trazia em mãos, visivelmente bem feito para mãos humanas. No cinto, uma lâmina curva simples. Andou tangenciando a dupla, tentando ouvir ainda mais nitidamente o que diziam:

— Lady Enora, por quê? — ela ouviu o clérigo lamuriar-se.

— Você ouviu da boca do Prior. — a mulher respondeu séria. — Sua provação por tocar nas Chamas da piromancia será tão intensa quanto todas as visões que avistou no ritual.

Pôde ver um brilho diamantino correr as maçãs do rosto do jovem.

— Quis trazer à Luz d'O Radiante minhas suspeitas e receios. Estávamos numa encruzilhada, com uma lâmina em nossos pescoços e outra próxima a ser fincada entre nossas omoplatas. — retrucou num misto de voz chorosa e frustração. — De que serve os dons que recebemos se nem podemos usá-los? Se tocar nas Chamas da piromancia para ver meu futuro custaram-me uns anos de vida, que seja. Aceitarei as penitências d'O Radiante sem reclamação.

Atiennys ponderou dar um passo, mas a humana pareceu ouvir seu ensaio de movimento, segurando o arco mais firmemente e pegando uma de suas flechas na aljava.

Ela conseguiu me ouvir, pensou consigo, descrente que uma mulher humana ouvisse a ela, uma caçadora experiente em perseguir humanos. E a humana, vestida em mais metal que Atiennys sequer pensava em usar, se mostrava hábil em perceber o ambiente à sua volta...

— Irmão Lordan — disse a mulher em tom bondoso. Parecia estar revelando aquela face, pois sabia que não tinha outro humano ali perto para vê-la —, você precisa se erguer e mostrar a mesma bravura que respira da Luz d'O Radiante. Chegamos aqui a menos de um dia, neste lugar esquecido pelos deuses, e pude ver, e Cenric concorda comigo, que você é o pilar que sustenta a sanidade da dupla. O Irmão Hoathak pode ser o seu irmão e seu braço armado, mas os deuses bem sabem que você é aquele nascido com a delicadeza em notar as necessidades dos comuns, do povo a quem você tanto mostra apiedar-se. — andou mais meio passo e ajoelhou-se ao lado do garoto humano que agora chorava ainda mais — Olhe para mim, Irmão. — ele olhou — Engula este ardor angustiante que sua consciência consome pelos erros cometidos. Guarde-os para a privacidade de uma confissão de capela. Diante da vila, você se mostrou mais que um menino, mais que um singelo sacerdote. Notei como o homem chamado Norman pousa os olhos com alívio quando você e a madre expõem suas ideias.

— Irmã cavaleira, eu peço, não, rogo, que ouça meu pedido. — disse o garoto. — Por favor, por tudo o que preza e tem de sagrado, seja minha confessora.

Hesitação correu pelo rosto, mas a mulher concordou.

— Usei a piromancia, pois achei o mais correto de fazer das divinas artes d'O Radiante. Mas o que vi... céus, como me arrependi. Vi um lugar que nunca quereria ter visto, caído. Vi a nós, juntos, lutando contra inimigos. — a voz do clérigo tremeu. — Mas o que mais me incomodou foi a cena de guerra. O que vi, o que senti, o que não quero ver e sentir... Sinto que um de nós dois morrerá nos braços do outro.

— Quem?

— Eu. — respondeu com peso na voz.

Parecia não ter terminado de falar. E não terminou.

— Ou Hoathak. Tenho medo...

A lua azul estava ainda a tempo do zênite, perfeitamente circular.

As Crônicas de Melkos - Crias do AbismoOnde histórias criam vida. Descubra agora