KATADESMOS

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Não escrevia, não lia, mas como em casos outros, obviamente, entendia de número, não de cálculos, geometria ou ângulos retos ou pênseis. Ainda assim, passou no vestibular para direito, formou-se, tornou-se douto, advogou em poucos, e como o destino tem sua dívida, cobrou: teve que se aposentar, e com um bom salário. Fora aluno mediano, lacônico, comportamento errático, soturno, não olhava nos olhos do interlocutor, não tocava nas mãos de ninguém salvo a da mãe já falecida. Disso, ele lembra ao desfilar com o carro, SVU, ao lado do cemitério onde nunca chegara a visitá-la. Aliás, no enterro, nem mesmo compareceu. Comprou terrenos, gado, empresas em bancarrota, fez negociações com políticos, com criminosos, isso passa como um flash quando ele chega diante da catedral da cidadezinha onde nascera. Procurava a casa que fora de seus pais, perguntou, rondou, nada deles. Até que um senhor por nome de Homero, diabético, cego, vejam só, o alertou que ali era não era bem-vindo, posto que o destino dele fora somente de falácia e farsa. E que estampado em seu rosto estava a face da mentira, que em seus dutos lacrimais corriam lágrimas de um outro, que em seu sangue corriam outro sangue, que em seu cérebro outro pensamento, que ele era embuste, que ele era um grande forasteiro, e dali partisse. Estava escrito como num katadesmos. Sudoréico e transtornado, tanto pelas frases e, óbvio, que não pela palavra maldita.

Correu para a estrada que julgava ser o caminho que tentava trazer na lembrança, só viu casebres, casas de taipa, seca e fome, vacas esquálidas, gente definhando, fantasmas ambulantes, tal qual se transfigurara agora, com terror súbito, admitiu de que se tratava de um. Voltou ao cemitério. Rondou, perguntou coveiro, nada de conhecerem a alcunha dos seus. Cartórios, tabeliões, colegas de comarcas, fóruns, prefeitos. Lembrou do velho cego. Uma mulher pintava as unhas e o seduzia com charme burlesco na antessala do hospital. Sua última tentativa. Onde nascera. Sem registros. Ele nem sim nem não. Foram à forra. Lembro sim de você, você que tirou minha virgindade e a da cabrinha nossa que criávamos. Meu pai nunca descobriu. Nem da cabra nem de mim, casei, enviuvei, e agora vivo prestes a me aposentar. A mulher baforava um charuto dele, bebia de um espumante mais caro da cidade em que ele já sabia que não era benquisto. Conseguira ter orgasmo, ela não. Enrugada, hálito de hortelã disfarçando o almoço com cebola e alho. Vestiram-se e assim foi. Partiu para a mansão.

Mordomo lhe veio com um envelope. Rosto de cera em semblante fúnebre. Para você, patrão. Rescendia a flores. Rescendia a um aroma que tanto reconhecia. Lembrou do que havia dito o cego. Lançou-se na poltrona, o mordomo lhe ofereceu bebida, nada aceitou, apenas rasgou avidamente o envelope. Sem remetente. Nada. A letra, sim. Detalhe: com o tempo teve que maquinar a ler e decorar falas, leis e artigos para compor a sua pantomima.

"Hoje renuncio quem sou. Renuncio o que não fui. Renuncio ao ter nascido, ao ter vindo e advindo a ti. Não renego tudo o que me deste e proporcionaste. Não renego os cuidados, as clínicas, os especialistas, o respeito e até uma certa afabilidade. Nunca fomos amigos, cúmplices, talvez. De crimes, de leviandade, da má-fé. Não tomarei seu já exíguo tempo. Sem mim, também fenecerá. Hoje, me revelo ao mundo quem tu és, eu, hoje herdo a mim um patronímico, hoje me herdo uma vida, hoje parto para alhures, coisa que não lembre o que significa, pouco importa. Hoje, me despeço, sem mágoa, rancor, ressentimento, somente estamos quites e prontos a ir. Devolva essa missiva ao Petrônio."

Olhos encharcados, rubros, rosto enrubescido, coração dilatado, o corpo todo a tremular, a cabeça a rodopiar. O mordomo lhe apareceu com uma xícara de chá. Pronto, senhor, pode, então, por obséquio, me devolver a missiva, em tom grave solicitou o envelope e seu conteúdo. Tomou o chá. Olhou para a casa, percorreu os quartos, a imensidão vazia de bugigangas e banalidades, como concluíra ao adentrar o escritório. Abriu o cofre, puxou envelopes e papéis pardos. Certidões de nascimento e de óbito. Dos avós, dos pais, dele e do remetente. Quem colocara ali? Aquilo pouco o preocupara. Nada mais importaria. Ardeu a garganta, sentiu premir a glote, da língua trôpega e balouçante só se emitiam grunhidos. Pesadamente, com quilos e dores no peito a mais, sofria de angina há pouco diagnosticada. Olhou para o teto, uma réplica das imagens da capela Sistina. Obnubilado, tentou focar na imagem das mãos entre deus e o homem a se fazerem. E aí, assumiu a fantasmagoria predestinada e consumatum est.

O remetente escreve a carta acima lida. Ele escreve em nanquim, pausadamente, como se calculasse cada palavra, mas nada lhe vinha à cabeça transeunte e moldada. Quis escrever de outro modo, mas para que, se toda a verdade, de fato, fora o outro, o gêmeo a ocupar-lhe o papel, o gêmeo a dar-lhe vida, a dar-lhe renome e prestígio. Nada de fortuna. Fortuna é sorte, pensou o remetente. E parou, oscilando entre um respiro e um olhar no papel já todo escrito. Colocou no envelope, fez a ligação determinada e assim se fez o que haveria de ser. Ou haveria de ter sido cumprido.

O gêmeo remetente sofria dos nervos, como assim disseram à época, vivia recluso, enclausurado, um absconso segredo, tanto pelos pais e pela família. Autismo, esquizofrenia, gênio, artista, filósofo?, ele se inquiria o que lhe fizeram ser, e aceitara estoicamente, apenas que sua missão era aquela. Dessa imposição, nasceu o gênio, o fausto intelectual e exímio filósofo, jurista e metido a escrever poemas. Todos esses rasgados e jogados na cova em que enterrara o irmão-pantomima-fantasma que lhe tomara a vida, o respiro, a identidade. Quando a última pá de areia estava a ser jogada, ele retirou do bolso do terno uns papéis, os pardos do cofre. Aqui jaz você, eu, pais, avós, tudo. Agora, ao pó retornaremos, murmurou entredentes. O caixão desceu. 

O mordomo o esperava na limusine. Pronto, agora, vamos ao cassino, ao melhor puteiro da cidade e depois ao aeroporto. Meu voo é às onze da noite, não é isso? Aquiesceu o mordomo, sem esboçar palavra. Fechou vidro que os separava. E o carro seguiu na cidade fantasma, posto que ali só um vivia. O remetente. O mordomo, o fim dele, não interessa para esse relato. Talvez, o velho cego de nome proposital o saiba. Mas quem irá beirar-se por aquelas bandas? 

KATADESMOSWhere stories live. Discover now