Já fazia semanas que o pânico se instalara por todo o continente de Daerich. Tudo começou quando uma onda de mortes misteriosas causadas por asfixiação cresceu em cada reino da Ilha Marinus. Pessoas caídas nas ruas agonizando em busca de ar, formavam a nova realidade de um mundo já em ruínas. Tudo piorou quando descobriram que a doença era contagiosa. O toque passou a ser algo raro, enquanto o medo acobertava o coração da população. Não havia solução aparente aos olhos de ninguém, apenas o desespero do fim era vísivel naquele momento.
O mundo parecia estar preso em uma neblina sufocante, onde o aroma pútrido da morte arrancava de todos o prazer de estarem vivos. Alguns culpavam o divino, diziam que era castigo dos Céus, já outros acreditavam que a bondade divina jamais os colocaria naquela situação e a culpa de todo o alvoroço deveria recair sobre a própria humanidade. Marianne fazia parte do segundo grupo e jamais responsabilizaria os Céus pelo mal que se alastrava em seu reino, Caelyn. Isso porque ela via a crueldade das pessoas de perto, trabalhando no hospital. Era normal ver mulheres machucadas por seus próprios maridos e crianças espancadas por aqueles que deviam protegê-los. Vítimas de esfaqueamentos e de confusões em tavernas também eram comum.
Amargurada com a própria sociedade, uma parte dela até desejou que os poucos profetas que ainda existiam estivessem certos ao proferirem palavras como: Arrependam-se, pois o fim está próximo!
Ela não tinha muito o que temer. Não era casada, não tinha filhos ou perspectivas. Seu trabalho como curandeira era árduo e quase nunca tinha tempo para diversão. Da sua família, só lhe restara seu irmão mais novo, Mikael. Seus pais morreram durante a invasão dos Andelinos, oriundos de um império forte no Norte do continente. A morte seria apenas um alívio para traumas que carregava, mesmo assim, o medo a abatia de vez em quando. Afinal, a vida era um presente que poucos desejavam abrir mão.
- Fará hora extra hoje? - Mikael perguntou, enquanto abraçava a irmã mais velha.
- Depende do número de pacientes, mas vou tentar chegar cedo - ela disse, soltando-se dele e prendendo a capa sobre os ombros.
- Tome cuidado, por favor. Não posso perdê-la - ele pediu. Desde que a doença começou a se espalhar, ele dizia isso a ela todos os dias. E todas as vezes, ela virava-se para ele e, olhando no fundo de seus olhos escuros, pedia a mesma coisa.
- Você também. Amo você.
- Também te amo - ele respondeu, antes de vê-la saindo de casa.
(...)
- Eu vou ficar bem, Srta. Angelo? - disse a garotinha para Marianne.
- É claro que sim, querida. Não se preocupe - a curandeira respondeu, mas os olhos da menina se arregalaram, quando uma gritaria se instalou no local e Marianne se pôs de pé, rapidamente.
Outros curandeiros corriam para a sala preparada para as vítimas da doença misteriosa. Eles usavam mascáras de ferro e túnicas longas e espessas, além de luvas de inverno. Mesmo sabendo do perigo, Marianne correu para perto a tempo de ver uma jovem mulher se debatendo dentro da sala especial, a pele queimando em vermelho e o rosto se tornando arroxeado. A mulher puxava o ar, mas não conseguia respirar. Era horrível assistir aquilo por isso Marianne deu meia volta, as sobrancelhas franzidas com a consciência de que aquela jovem não iria sobreviver. A garotinha de quem estava cuidando parecia assustada e a curandeira forçou um sorriso para acalmá-la, pedindo aos Céus que aquela praga nunca afetasse um coração puro e inocente.
(...)
Já havia anoitecido quando Marianne saiu do hospital. No caminho de casa, aquela jovem ainda rondava sua cabeça. A doença misteriosa a tirara a esperança do futuro de forma extremamente brutal. Talvez aquele fosse mesmo o fim do mundo. Naquele dia, o número de mortes ultrapassou o recorde de cincos anos atrás, quando o reino estava em guerra com o Império de Andelle. Se continuasse assim, a população seria exterminada. Às vezes, parecia tudo um sonho, mas era a realidade. Uma realidade dura e díficil de aceitar.
Marianne pensou em todas as crianças como a garotinha de quem tratou e teve medo por elas. Em silêncio, fez uma oração e implorou para que os Céus as livrassem de toda a dor na hora do fim. Já tinha terminado o seu pedido quando um jovem a abordou, com a respiração acelerada, dizendo:
- Mikael. Ele não está bem. Acho que a praga o pegou, Marianne.
Marianne sentiu o chão desabar sobre ela. A imagem da mulher no hospital a atingiu de novo e ela sentiu-se prestes a vomitar ao imaginar aquilo acontecendo com seu irmão. Engolindo o choro, forçou-se a perguntar a localização dele.
- Ele está taverna do Louis.
Com o corpo tremendo, ela correu até lá e encontrou uma multidão do lado de fora do lugar, apenas observando pelas janelas, enquanto seu irmão agonizava no chão sujo. Mesmo com todos os gritos e apelos para que não entrasse, Marianne disparou pela porta e ajoelhou-se ao lado de Mikael.
Os olhos dele já estavam esbugalhados e a pele, geralmente cor de bronze, tomava um tom acinzentado conforme o ar escapava de seus pulmões. Lágrimas corriam como chuva dos olhos de Marianne vendo o irmão apertar sua mão com força, implorando com os olhos para que ela se afastasse e o deixasse ali.
- Não. Não vou sair daqui. Como posso abandonar tudo o que tenho? - ela sussurrou, em meio à dor. Ele apenas olhava para ela em resposta. - Eu amo você, Mikael. Vai ficar tudo bem, irmão.
Ele fechou os olhos, desejando que acabasse logo, enquanto sufocava. Era tão doloroso que parecia que o ar tornara-se venenoso. Até mesmo sua pele protestava contra o oxigênio ao queimar e arder. Marianne percebeu o sofrimento dele e soltando sua mão por um minuto, tocou o peito do irmão, aproximou e disse:
- Eu posso acelerar isso. Você não tem que sofrer tanto assim, mas eu vou ter que matá-lo - ela soluçou, a voz embargando. - Está tudo bem para você?
Ele apenas balançou a cabeça freneticamente, enquanto afarva repetidas vezes. Ela se levantou e correu para a parte de trás do balcão da taverna. Encontrando uma adaga perdida entre os talheres, voltou para o lado dele.
As pessoas ainda gritavam e choravam do lado de fora, assistindo a ruína dos irmãos.
Com as mãos tremendo e um embrulho nascendo em seu estômago, Marianne estendeu a adaga para cima. Bastou um segundo de hesitação da parte dela para que Mikael segurasse sua mão e assentisse, mais uma vez.
De olhos fechados, ela tomou coragem e enfiou a adaga no coração do próprio irmão e só voltou a abrir os olhos quando sentiu o aperto dele em sua mão afrouxar. Beijando sua testa, arrancou a adaga do corpo dele e permitiu-se chorar e chorar.
Pranteou pela morte de sua única família naquele lugar com má iluminação e cheiro de cerveja até sentir seu peito apertar-se. Sua pele começou a arder, bem de leve, mas foi o suficiente para que ela entendesse o que estava acontecendo. Era sua vez. A praga chegara para levá-la também.
Sentiu a cabeça girar e a simples ação de respirar tornou-se uma tortura quando suas narinas começaram a queimar. Ela respirou fundo, uma última vez, e com a adaga em mãos, pediu aos Céus que cuidassem bem dela e de seu irmão. Com um último suspiro de alívio, a adaga perfurou seu coração e ela se fez deitar sobre o corpo do irmão.
Lá fora, a noite entrava em seu auge, as pessoas iam para suas casas com a cena dos dois irmãos impregnada em suas mentes. Lamentavam por suas mortes e finalmente aceitavam que o fim estava próximo. Afinal, se o divino havia permitido que essa tragédia arrebatasse pessoas tão boas como os irmãos Angelo, já não havia esperança para o resto do mundo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
E se o mundo acabar?
Short StorySEGUNDO LUGAR na Copa dos Contos - Edição de Fim do Mundo. Coletânea de contos.