Capítulo 1

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Capítulo 1 


Celeste

Querido diário, hoje contei para minha terapeuta que eu costumava escrever em um diário quando eu era adolescente. Era o modo que eu tinha de desabafar, já que meus pais eram muito rigorosos e eu não tinha liberdade para fazer nada. Conheci o Alfredo com quinze anos e casei cedo só para sair de casa, eu admito. Mas tive sorte, como o meu bom Deus permitiu. Conheci uma liberdade que eu não tinha em casa, ao lado do meu marido e hoje estamos prestes a comemorar cinquenta anos de casamento. A maioria desses anos com bastante felicidade. Mas não o tempo todo, coisas ruins aconteceram também, com as pessoas que amamos. E eu me vejo de mãos atadas, não sei o que fazer.

Contei hoje para a minha terapeuta que todas as crianças da vizinhança brincavam na rua, mas que aquilo não era permitido para mim. O que eu fazia era ficar na janela à espreita, apenas espiando as outras crianças na rua com meu diário e uma caneta em mãos. Eu descrevia tudo o que via para me lembrar mais tarde. E também escrevia histórias, de como seria se eu pudesse simplesmente sair, me juntar a elas, e brincar também. Mas meu pai não permitia que eu fizesse nada. Só que ficasse dentro de casa, ajudasse nas tarefas domésticas, fosse ao colégio, e que depois voltasse para a casa e ajudasse a minha mãe mais um pouco. E até isso de eu ir para o colégio ele queria tirar de mim.

Eu escutava as conversas dele com a minha mãe. Meu pai dizia que estudo não era boa coisa para uma mulher, que bastaria eu aprender a cozinhar, a cuidar da casa e a ser uma boa esposa. E eu sonhava com festas e com vestidos novos.

Sabia que meu pai tinha uma boa condição financeira, mas ele não me dava nada e as minhas únicas roupas eram de segunda mão. Herdadas da minha já falecida prima Consuelo que por ser um pouco mais gordinha do que eu na época ficavam todas folgadas em mim. Minha prima gostava de comer, e foi isso que acabou matando-a ainda na casa dos vinte. Ela não resistia a doces e na época a gente não tinha esse conhecimento de hoje sobre a diabetes.

Um dia fui ao mercado sozinha, o que era raro a minha mãe permitir, mas ela estava com um monte de panelas do fogo e precisava de mais batatas, com urgência. Ela queria fazer o prato preferido do meu pai, bacalhau com batatas, por isso me deixou ir sozinha ao mercado, e assim eu pude conhecer o meu Alfredo. Tive sorte, graças às batatas. Casei cedo. E ele me levava a festas e me comprava muitos vestidos bonitos. E tivemos dois filhos que hoje já são crescidos. Só não tive mais porque Deus não permitiu, o meu desejo era encher a casa de crianças.

E é ai que começa realmente o que eu quero contar, o verdadeiro problema, com os meus filhos.

De repente, eu errei na criação deles. De repente, esse foi o verdadeiro problema. Eu dei liberdade demais aos dois, os deixei que fizessem várias das vontades que me foram negadas na infância. Deixei que eles brincassem com os vizinhos, chegassem em casa tarde, tivessem os amigos e namorados que escolhessem. Deixei que eles fossem livres e felizes. Pelo menos os criei para que eles fossem ser felizes. Mas acho que quando a gente sempre teve tudo o que quis, e sempre foi feliz quase o tempo todo, fica mais difícil de lidar com as perdas. Acho que se eu tivesse sido mais rígida, menos permissiva, seria mais fácil agora para a minha filha Samanta. Desde que ela perdeu o marido, há um ano, ela se fechou. Eu achei que com o tempo ela melhoraria, mas não melhorou.

Minha filha se isola. Mesmo presente, ela não está de fato presente, só de corpo. Ela não se envolve, não participa. Desde que o Miguel morreu, naquele dia tão trágico, eu não reconheço a minha filha, é como se eu a tivesse perdido também. E me dói ver a minha neta, a Júlia, agora com quatro anos, sem pai e sem mãe também. Porque, essa é a parte mais difícil para mim de admitir, minha filha perdeu toda a capacidade de amar com o acidente, inclusive a de amar a própria filha.

Desde que você nasceu (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora