MARIAH
Dentro do carro da polícia eu estava completamente inerte e estática, olhando pro nada e ouvindo como se tivesse a metros de distância de mim o Cauê conversar com os policiais e nas muitas coisas que eles falavam eu pescava uma palavra ou outra sobre delegacia, familiares, hospital, sobre mim.
— Mariah, o policial tá falando com você... — Eu ainda estava envolta no abraço do Cauê, ele tinha passado os dois braços em volta do meu corpo e me pressionou um pouco pra que eu prestasse atenção no que ele dizia.
— Oi.. desculpa. Pode repetir, por favor? — Falei olhando pro policial.
— Nós vamos te levar primeiramente pro hospital, é necessário realizar uma avaliação médica e alguns exames, a senhora está em choque e precisa de cuidados. Quanto à burocracia de prestar depoimentos e registrar boletim de ocorrência, podemos fazer isso no decorrer da semana, como o criminoso atentou contra a própria vida, nós devemos iniciar uma série de protocolos, a empresa que ele trabalhava já foi acionada, não encontramos familiares registrados, provavelmente era um caso de falsidade ideológica também. Espero que consiga apoio para lidar com essa situação e sentimos muito pelo ocorrido. — Eu apenas assenti com a cabeça, nem consegui agradecer apesar de que estava muito grata ao bom serviço prestado naquela noite.O trajeto até o hospital de referência foi feito na viatura policial, como forma de seguir o protocolo e também tendo em vista que o carro da Cauê foi guinchado pela seguradora por conta da batida. Eu permaneci apática, não conseguia estabelecer nenhum tipo de conexão mental sobre o que tinha acabado de acontecer, todas as vezes em que eu parava pra raciocinar minha visão ficava turva e minha mente doía, eu tinha estudado recentemente sobre as fases do estresse pós traumático e como era extremamente recente, era como se eu estivesse inerte, em estado de choque de fato, a sensação é como se eu tivesse abandonado meu corpo e observasse os desdobramentos dali em diante de fora, como uma telespectadora, na terceira pessoa.
Ouvi o Cauê ligar pros meus pais, informar por alto o que tinha acontecido e dar o nome do hospital pro qual estávamos indo, também vi ele tentar ligar repetidas vezes pro João Vitor sem sucesso, e então ligar pra Lis e só então ouvi a voz desesperada e em prantos do meu irmão, mas não entendia de fato o que ele queria dizer, parecia um outro idioma.
Quando chegamos ao hospital, fui acolhida pela equipe de enfermagem com uma empatia fora de série, quando o Cauê precisou me soltar dos braços — sim, ele ainda não tinha me soltado do abraço por nem um segundo sequer — me esquivei do toque da enfermeira chefe e me escondi no peitoral dele de novo, mas ele levantou meu queixo, me olhou bem nos olhos e não precisou falar nada, eu soube que nada mais me aconteceria dali em diante, eu soube que ele estaria ali e que ele não deixaria que me encostassem pra fazer nenhum tipo de maldade, mas eu precisava ser examinada, eu precisava ir. Numa respiração profunda e até dolorosa fui eu quem saí do abraço dele dessa vez.
— Eu vou com ela, eu acompanho, não vou deixar ela ir sozinha — O Cauê segurou minha mão imediatamente, assim que me soltei pra seguir com a enfermeira corredor adentro.
— O senhor tem algum grau de parentesco com ela? Nesses casos específicos a vítima só pode ser acompanhada por parentes de primeiro grau, não leve a mal, é que em muitas vezes é o próprio par romântico o infrator de violência.. — A enfermeira olhou dele pra mim com os olhos gentis e na intenção de absorver qualquer insegurança que eu pudesse sentir em relação a presença do Cauê ali comigo, sem saber que na verdade ele era meu porto seguro naquele momento, e talvez em todos os outros que viessem a partir de então.
— Por favor, eu me sinto melhor.. — Comecei a falar.
— Mas os policiais estão aqui, pode perguntar, eu sou o namorado.. — O Cauê falou ao mesmo tempo que eu e me fez enrugar a sobrancelha, e por algum motivo inexplicável senti uma vontade mínima de rir pensando que a gente vivia num eterno morde e assopra, que não conseguíamos sustentar uma boa relação de amizade sequer, mas naquele momento ele tava disposto a mentir e interpretar um papel só pra não me deixar sozinha. Afastei aqueles pensamentos imaginando e tendo a certeza que ele faria isso por qualquer pessoa, afinal, esse era o Cauê, a pessoa mais leal e humana — nas suas particularidades e limitações — que eu já tinha conhecido.Me assustei ao ouvir um choro alto e gritos doloridos vindos da porta daquela ala hospital.
— Mariah.. FILHA! — Minha mãe vinha correndo na minha direção, vestindo pijamas e um casaco do meu pai, me arrancou dos braços do Cauê, que se afastou pra me deixar ser acolhida por aquele abraço que eu precisava mais que tudo.Ao ser tocada pela minha mãe a minha apatia se dissipou e eu desabei, literalmente desabei, caí no chão abraçada com ela e me senti minúscula, pequena demais, a minha vontade era entrar dentro daquela que foi meu abrigo por tantos meses e ficar lá de novo onde eu estava segura. Estávamos no setor de violências e traumas, então era uma área com certa privacidade e bloqueada aos pacientes que não viessem acompanhados de policiais e ambulâncias.
Meu pai se juntou a nós duas no chão, olhei pra eles com a visão turva de tantas lágrimas e minha mãe só conseguia falar insistentemente:
— Eu te amo filha, mamãe está aqui, eu te amo. — Eu ouvia e deixava essas palavras me abraçarem enquanto olhava nos olhos do meu pai e via um nível de dor que eu acho que ele ainda não tinha experimentado, era como se ele tivesse com medo, frustrado por não ter conseguido me proteger, por não ter conseguido estar lá e mesmo que eu estivesse ali e estivesse teoricamente, ou fisicamente pelo menos, bem, era como se tivesse mais alguma coisa acontecendo com a qual ele não conseguia lidar. Ele abraçou a mim e a minha mãe com tanta força que eu gemi de dor quando senti que ele pressionou sem querer a ferida superficial que o sequestrador tinha feito na minha barriga.Ele nos soltou e foi falar com o Cauê e depois com os policiais mais afastados, sempre olhando aos arredores, desconfiado. A enfermeira que estava encarregada de mim e dos meus exames me ajudou a levantar do chão e me levou, junto com a minha mãe, para o setor onde eu faria os exames de corpo e delito e também passaria por atendimento emergencial com a psicóloga do hospital, como o hospital de referência é da rede pública e — sendo o Rio de Janeiro, que não é o lugar mais seguro do mundo — tinham mais algumas pessoas na minha frente, eu imaginei que esses procedimentos iam seguir madrugada adentro, e eu tinha razão.
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8 ou 80
General FictionClassificação Indicativa: +16 Contém: palavras de baixo calão; cenas sexuais; consumo de álcool e drogas; violência. Mariah viu a vida de sua família virar do avesso aos 5 anos, na pequena cidade de 15.000 habitantes, Goianira/GO. Agora, com 21, tra...