A última carta

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São Paulo, 2 de novembro de 2023

Um dia depois do outro era o que eu sempre ouvia as pessoas dizendo, mas elas não tinham ideia de como era viver sem você. Bem, talvez alguns deles sabiam. Seus pais chegaram no dia seguinte, descrentes com o ocorrido. Sua irmã só soube no dia do funeral. Eu confesso que não me lembro de muita coisa daquele dia, passei a maior parte das horas sedada.

No começo, eu não conseguia nem comer ou me cuidar. Sua avó foi estranhamente forte naqueles dias. Com o passar dos anos, eu soube por que ela era uma mulher tão incrível. Ela me acolheu, mesmo quando todos achavam que eu estava me aproveitando de seu luto. Como se eu pudesse crestar o pouco que ela tinha em vida.

A verdade era que eles não me viam como alguém que perderam o amor de sua vida, pois era jovem, ou qualquer outra desculpa que os adultos inventavam, tredo suas memórias juvenis. Para eles, eu era apenas uma oportunista. Mas eu só tinha dezessete anos na época e achava que sabia algo da vida. E comecei tão cedo aprendendo o que era perder.

A sua avó não desistiu de mim, e eu me agarrei a ela para sobreviver todos esses anos. Acho que ela via em mim um pouquinho de você. De vez em quando ela me chamava de Joice, eu nunca reclamei, apesar de sentir como se você estivesse aqui comigo, e por isso ela chamava pelo seu nome.

A sua avó se foi há um ano, resistiu bravamente o câncer até onde deu. Mas ela era muito idosa para poder fazer a cirurgia. No entanto, viveu uma vida boa, na medida do possível. Enfrentamos tempestades, secas e dias frios juntas. Uma tinha a outra, afinal.

Depois da morte dela, soube que o sítio foi colocado à venda, eu estava sem ter para onde ir. Ao longo dos anos guardei dinheiro, mas não dava nem para pagar metade do preço que a família pedia no imóvel e terreno. O sítio expandiu bastante nos últimos tempos, nós plantamos bananeiras, abóboras e uma horta nos dava tudo o que era necessário para viver. Eu me tornei vegetariana com vinte anos, pode acreditar? Também parei de fumar e beber.

Costumava caminhar pelas matas ciliares, até o rio e observava tudo, apesar de não ter coragem de entrar na água, ou ficar muito tempo depois do sol se pôr. Meu coração ainda disparava forte quando ouvia o barulho do motor de um carro. E devo dizer que foi preciso muita luta para que aquela estrada recebesse a sinalização adequada para que as pessoas não sofressem mais acidentes. Na verdade, demorou tempo demais e outras pessoas sofreram quase o mesmo destino que você. Há pouco tempo, após as eleições, a estrada foi pavimentada e finalmente uma placa instalada, junto ao limite de velocidade.

A pessoa que a levou embora foi presa, mas deixou a prisão depois de pagar a fiança. Respondeu o processo em liberdade e ficou preso apenas cinco anos. Apenas cinco anos, enquanto você se foi da minha vida para nunca mais voltar. Ele está por aí, casado e com filhos, vivendo a sua vida. O quão injusta são essas coisas?

Eu decidi continuar vivendo por você, pelos seus sonhos, por sua vontade de viver. Não era nem de longe tão estral quanto você foi, com suas ideias geniais e inteligência incomensurável, mas eu tentei. Não conseguiria entrar para as universidades que você prestou o vestibular, mas eu terminei o ensino médio e estudei o magistério aqui na cidade mesmo, assim que me formei, dei aula na escola. Inclusive era professora de matemática, pode acreditar? Trabalhar com crianças transformou a minha vida, pois elas me faziam preencher muito do espaço vazio na minha cabeça. Somente assim eu conseguia voltar para o sítio, dormir, e me levantar no outro dia.

Eu tinha um propósito. E o segui até onde pude.

No último dia que me deram para deixar a casa no sítio, eu já havia feito as malas. Não havia muito o que levar dali, senão as poucas coisas que eu adquiri com o tempo.

Entreguei as chaves para a representante da imobiliária e deixei o lugar. Olhei para trás apenas uma vez e entrei no opala azul. Ele era uma relíquia que me foi dado pela sua avó, e ainda funcionava bem.

Dirigi até aquele lugar, sempre que passava por ali sentia como se o meu corpo perdesse um pouco de energia. Olhei a placa que pedia atenção, depois a outra que informava a velocidade máxima e, por fim, a placa com aviso de pedestres. Parei na faixa e permiti que alguns banhistas atravessassem, os carros atrás de mim buzinavam, mas eu nunca me preocupava com isso. Segui apenas quando não havia mais ninguém para atravessar.

Com as mãos no volante, eu fui deixando a cidade. Meu mundo nos últimos vinte e oito anos. Desse ponto em diante eu não saberia para onde o opala me levaria, mas eu sabia que você estaria comigo, aqui dentro do meu coração, em um sentimento dozel que jamais conseguiria apagar.

Eu tenho quarenta e cinco anos agora, sim sou uma senhora, não é? Vivi mais da metade da sua vida. Vi tantas coisas, o nascer do sol, o pôr do sol, as primeiras chuvas da primavera, o frio do inverno. Uma vez até geou e as plantas ficaram cobertas de gelo. Mas nada disso foi mais bonito do que o seu primeiro sorriso para mim. Éramos tão jovens, você era um prodígio, e todos me achavam um estorvo. Mesmo assim você me amou, e por isso você sempre foi a beleza mais incrível que meus olhos chegaram a ver.

Deixar essa cidade não quer dizer que estou deixando o meu passado. Eu apenas preciso continuar vivendo um dia depois do outro, por você, por vovó, por um futuro que vocês duas não vão ver, mas os meus olhos vão registar.

Sua eterna namorada.


Notas da autora: Obrigada por ler :3

A última cartaWhere stories live. Discover now