14 - Eu quase fico de castigo por causa da minha namorada inexistente

9 5 1
                                    

— Então a casa foi atacada por folclóricos e vocês fugiram para a floresta com a ajuda da Luiza?

Olhei para as janelas que davam para a piscina. Sentados na mesa de jantar, sem nenhuma janta, apenas um suquinho de maracujá, eu estava quase fugindo desesperado. 

Lembra o que Luiza disse sobre os Sgarbis serem bruxos? Sobre quererem filhos para subirem na hierarquia do mundo bruxo, ou qualquer bobeira dessas? Era verdade. Em partes.

A Sra. Sgarbi disse explicou que todos os que morava no Condomínio Sinos Dourados eram bruxos. Vinham de famílias tradicionais bruxas, o que entendi como a turma dos populares. Nossa família, os Sgarbis, eram tão importantes quanto a família de Luiza, os Zandonadis. Só faltavam os herdeiros para que os Sgarbis continuassem na vanguarda da comunidade bruxa.

Esse foi o motivo para que eles buscassem crianças com potencial para magia. Por isso tinham adotado Sofia e eu.

Olhei para Sofia, que enrolava os cachos brancos nos dedos das mãos. Será que o fato de ser super inteligente tinha ligação com ser uma bruxa? Ou ela seria uma semideusa como eu? Lá em Mbaraca, a Thainara ficou assustada por Sofia e Luiza terem entrado nos domínios da cidade deles, como se isso não fosse possível. Sabíamos que Luiza era uma bruxa, e isso deve ter confundido fosse lá qual fosse o sistema de defesa deles. Com a explicação da Sra. Sgarbi, Sofia só poderia ser uma coisa ou outra.

Ou será que existiam outros seres que dominavam a magia? O mundo não podia se resumir a semideuses, bruxos e seres mitológicos.

— Terra chamando Miguel — disse a Sra. Sgarbi, passando a mão na frente do meu rosto. — Até que enfim acordou. Dormindo acordado, querido?

Ela sorriu, e, por algum motivo, algo dentro de mim se aqueceu. Joguei aquele sentimento lá pro fundo. Não podia me apegar. Se bem que ser filho de uma família de bruxos era, tipo, uau.

— Desculpe, Sra. Sgarbi. E sim, foi isso que aconteceu. Nos escondemos na floresta até termos certeza de que era seguro. Luiza nos explicou sobre o mundo bruxo, mas confesso que não acreditei que vocês eram realmente, você sabe. Bruxos.

A Sra. Sgarbi sorriu. Embora seus olhos estivessem cansados. Cruzei os dedos dos pés para que Sofia não abrisse a boca e desmentisse minha história. Passei os últimos vinte minutos usando todas as minhas habilidades para criar uma história que colasse com a Sra. Sgarbi. Se Sofia não abrisse a boca…

— Tivemos ajuda da namorada do Miguel.

Esquece. Sofia abriu a boca.

Meu rosto ardeu quando a Sra. Sgarbi ergueu uma sobrancelha para mim.

— Namorada?

— Não é nada disso, Sra. Sgarbi.

Ela estreitou os olhos. Engoli em seco, as mãos ficando suadas.

— Você arranjou uma namorada em um dia? Você tem apenas treze anos, querido. Sei que o seu pai…

— Ele não é meu pai — disparei, me arrependendo imediatamente. — Me desculpe.

— Tudo bem, querido — ela falou, com o olhar tão triste que me quebrou. — Como eu dizia, sei que o Sr. Sgarbi e você ainda não tiveram tempo de conversar, mas quando se trata de garotas, na sua idade…

Se não fosse negro, teria ficado vermelho que nem pimentão.

— Por favor, mãe. Não quero falar sobre isso.

Ela ficou muda, me encarando. Piscou uma vez. Duas. Três. Os lábios se curvaram levemente para cima.

— Tudo bem. Vou falar com os pais de Luiza depois. Nunca ouvi falar de mitológicos atacando uma comunidade bruxa desde a revolta mitológica de 1860, na Grã-Bretanha. Isso com certeza é incomum. Vou verificar se outra casa da comunidade foi atacada. Vai ficar tudo bem. Meu filho.

Aquelas palavras mexeram comigo. Meu filho. Não deviam ter mexido. As coisas estavam indo rápido demais. Esse lance de sentimentos só serviam para magoar. Eu devia ir embora o mais rápido possível. Só que não conseguia. Sofia e a Sra. Sgarbi estavam se tornando importantes para mim. E, contrariando todas as minhas regras, eu estava me apegando.

— E agora, querido, que tal você me contar quem é sua namorada?

Arregalei os olhos. Antes que eu pudesse pensar em algo para dizer, ou pior, que Sofia dissesse algo que, com certeza, me deixaria no caminho do maior castigo mágico que uma mãe bruxa pudesse pensar, a campainha tocou.

Sra. Sgarbi suspirou.

— Acho que os novos segurança e empregada chegaram. Um minuto — falou, se levantando —, vou recebê-los.

Enquanto ela saia, olhei para Sofia.

— Porque você falou da Thainara? — sussurrei. — Os Sgarbis são bruxos. Eles caçam folclóricos!

Sofia ajeitou os óculos.

— Papai e mamãe, Miguel. Já disse que eles são papai e mamãe. Não os chame pelo sobrenome. É desrespeitoso. 

Mordi a mão para não gritar.

— Tudo bem, os chame do que quiser. Mas eles não podem saber de Thainara. Ou de Mbaracá. Se o Sr. Sgarbi descobre e conta para os outros bruxos, pode ser que eles iniciem uma guerra contra os semideuses e folclóricos.

Sofia torceu o canto da boca. 

— Isso seria ruim. Muitos folclóricos morreriam.

Quase ergui as mãos para os céus. Antes que eu pudesse dizer para ela parar de falar que Thainara era minha namorada, ouvi a voz da Sra. Sgarbi se aproximando. Ela parecia um pouco irritada.

— … que isso é um pouco fora do comum. Certamente vocês entendem.

Silêncio. Deu para sentir a tensão ali da sala de jantar. Uma voz feminina, um pouco conhecida quebrou o silêncio.

— Ela me ajudará, Sra. Sgarbi. Tem experiência em serviços domésticos.

— Só não temos o de deixá-la, senhora. Nossos pais, bem, eles não estão mais entre nós. Ela é tudo que temos, e não queremos deixá-la sozinha — falou outra voz, masculina, que infelizmente reconheci. 

Me levantei sobressaltado, quando, depois de um momentos de hesitação, a Sra. Sgarbi respondeu, com a voz mais suave.

— Entendo. Ela poderia parar uma Casa Transitória. Está bem. Vou aceitar que sua irmã more conosco, desde que ajude você em algumas tarefas, Dairene.

Meus olhos se arregalaram quando a Sra. Sgarbi entrou na sala acompanhada de Zuiu, Dairene e Luara. Os três folclóricos olharam para mim, os olhos brilhando de uma emoção que, eu esperava, fosse de alegria em me ver.

— Esses são meus filhos, Miguel e Sofia. Espero que Luara e eles possam ser amigos.

Eu conseguia ver muitas coisas passando pela cabeça da Luara. Ser minha amiga, tive certeza, estava em último lugar nas prioridades daquela folclórica.

— Ah sim — falou Dairene, com um sorriso que não chegou aos olhos —, tenho certeza de que eles se darão muito bem.

Miguel Oliveira e a Árvore de EldoradoWhere stories live. Discover now