Ele busca a toalha e me entrega, anunciando que iria tomar banho e que já voltava. Deixo a toalha em cima do varal de chão e pego as roupas dele para pôr penduradas. Penso em fazer o mesmo que ele e tirar as roupas molhadas do lado de fora, mas penso na possibilidade de câmeras e vizinhos stalkers, então decido ficar com as roupas no corpo. Quando ele me avisa que o banheiro estava disponível, subo as escadas correndo e entro logo no box.
Tiro as roupas molhadas e tomo um banho quente. Esfrego bem o rosto para tirar a maquiagem e gasto o condicionador caro dele no meu cabelo. A cor vai desbotar e não é próprio para o meu tipo de fio, mas é o que temos hoje. Coincidentemente, a toalha que ele me empresta é rosa choque, então a tinta não mancha a toalha, graças a Deus. Deixo ela enrolada no meu cabelo por um tempo antes de desenrolar e enrolar no tronco. Abro a porta devagar para ver se ele ainda estava ali no quarto.
- Vicente?
- Eu.
- Pode pegar a camisa que você me emprestou da última vez?
- Coloquei pra lavar, vou pegar outra.
Ele se levanta, vai até o armário, pega uma outra blusa enorme e me entrega. Minha cabeça neurótica sempre me manda trazer itens extra na mochila, por causa dela tenho uma calcinha sobrando. Vou até o andar de baixo e visto a peça íntima antes de subir de volta. Estendo minha toalha emprestada no banheiro e me sento na cama dele.
- Tá com fome?
- Pior que tô.
- Pedi uma pizza, deve chegar daqui a pouco.
- Nossa, tem pizzaria aberta essa hora?
- Tem, só espero que eles não cuspam na nossa pizza.
A campainha toca pouco menos de 25 minutos depois do solicitado e comemos como ogros. Escovo os dentes e ficamos conversando até adormecermos, o que não me lembro bem de ter acontecido.
Acordo sozinha na cama e espreguiço ainda deitada, tomando coragem antes de levantar. Desço as escadas sem muito cuidado com o barulho e vejo Vicente sentado na cadeira tomando café em silêncio. Cruzo os braços e encosto na parede para conseguir olhar para ele melhor. Seu cabelo escuro bagunçado e cheio, sua postura certa demais para alguém tão alto, as pintas na linha d'água, na ponta do nariz e no lábio inferior, seus braços definidos e seu peito descoberto, tudo junto em um só fica harmônico como um quadro que demorou anos até ser finalizado. Ele se levanta e coloca a xícara vazia dentro da pia, enchendo ela de água e volta a se sentar.
- Vai ficar parada?
Tomo um susto e sinto uma onda de vergonha me atingir. Viro rápido a cabeça e vejo um retrato.
- Me distraí com a foto do quadro.
- A que tem eu e o Kabum?
Olho as fotos na parede e vejo Vicente com um cão-guia.
- Kabum é o nome do seu cachorro?
- É. Ele foi o melhor cachorro do mundo. Ganhei pouco tempo depois de perder a visão. Ele tinha três anos quando chegou pra mim e morreu no final do ano passado. Espero que ele tenha gostado da vida comigo.
Sua voz fica mais carregada conforme as palavras deixam sua boca. Ele passa a mão nos olhos e funga.
- Sinto saudade de ouvir o som dele andando e até do latido de megafone dele. Eu lembro de uma vez que ele saiu correndo atrás de um amiguinho meu depois que ele me empurrou e só parou quando minha mãe segurou ele. Tudo o que eu sei sobre amar eu aprendi com ele. Eu fico em pânico às vezes quando eu passo um dia inteiro sem lembrar dele porque minha cabeça fica ocupada demais pensando em trabalho. Minha memória é tudo o que eu tenho e sentir que eu tô esquecendo dele me faz querer pedir desculpas.
Ele cede e começa a chorar.
- Não tem mais pelo nas minhas roupas, não tem mais biscoitos no armário da cozinha e nem o guizo da coleira dele me acordando de manhã. E eu não sei o que eu faço com isso. Eu espero que ele esteja bem no céu dos cachorros.
Ouvir sobre o Kabum e ver ele tão vulnerável me faz chorar também. Me aproximo e abraço suas costas. Passo as costas das mãos nos olhos e respiro fundo.
- Eu também tenho medo de esquecer a minha mãe. As frases que ela mais falava, a voz dela, a risada e até o jeito que ela ficava brava. As pessoas me falam o tempo todo o quanto eu pareço com ela, mas quando eu olho no espelho eu só vejo eu. E eu queria ver ela, só uma vez. Que nem nos filmes, quando a protagonista fala com alguém que morreu e a pessoa orienta ela e é um momento mágico.
Seco meus olhos e tento controlar minha voz.
- Mas a vida real é um balde de água com gelo, não tem orientação, não tem contato e não tem conforto. Eu já não lembro mais como era abraçar ela e pensar nisso me deixa maluca. Que tipo de filha eu sou? Quando o colar que ela me deu de presente de quinze anos arrebentou, eu chorei até meus olhos sumirem de tão inchados. Meu pai consertou e eu coloquei de volta. Mas tem certas coisas que... não dá pra consertar. Eu só espero que o tempo não me tire tudo o que eu tenho dela.
Fecho os olhos e sinto os braços de Vicente me envolverem.
- Pelo menos água com gelo faz bem pra circulação.
Rio e choro com o comentário enquanto seguro o pingente do meu colar com a inicial do meu nome, que também é a inicial do nome da minha mãe, Janaína.
Saudades, mamãe.
Lavo o rosto na pia e seco no antebraço. Assoo o nariz em um guardanapo e jogo fora.
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Amigos (só por enquanto)
FanfictionApós a demissão do pai, morte da mãe e formatura na faculdade, Júlia precisava de dinheiro para pagar as contas. Um folheto preso em um poste anunciava uma boa quantidade de dinheiro por um trabalho de um mês fazendo companhia ao filho de uma senhor...