Abro os olhos em uma escuridão quase que completa, não fosse uma pequena claridade que entra pela varanda do quarto, certamente de alguma luminária na área externa. Uma leve pressão no peito me faz respirar um pouco rápido demais e me deixa com a impressão de que estava sonhando com algo não muito bom, mas do qual não consigo me lembrar. Balanço a cabeça tentando pensar em outra coisa e sinto um peso em meu braço, desapercebido pela sensação anterior. Quando olho para o lado, não consigo evitar um sorriso. Ísis dorme um sono pesado, seu corpo voltado para o meu, sua boca levemente aberta, os cabelos ainda úmidos do banho que tomamos juntos antes de nos deitar. É impressionante como, mesmo após um dia praticamente inteiro ao lado dela, eu ainda não consigo acreditar que finalmente estamos aqui. Mordo o lábio tentando conter a vontade de acariciar seu rosto, de beijar sua boca, de tomar seu corpo novamente no meu.Pego o celular no criado-mudo e checo as horas, constatando que não falta muito para amanhecer e que também não fiquei adormecido por muito tempo. Faço uma lista mental de tudo que preciso pedir para comprarem antes que Ísis acorde, quero que ela tenha mais do que somente frutas para se alimentar, quero que ela se sinta bem, que sinta o quanto vou fazer de tudo para que nossas vidas, nossos mundos, nossos gostos se encaixem. Agora que ela finalmente está comigo, não vou deixá-la escapar.
Outro desconforto me assombra quando lembro do medo que senti quando ela me contou sobre a possibilidade de sermos irmãos. Apesar de eu não acreditar e de torcer com todas as forças para que isso não se provasse verdade, eu estava apavorado que aquele exame desse positivo. Eu já estava perdidamente apaixonado por ela e eu sabia que ela também queria ficar comigo. Ela suspira e se mexe de leve e eu me pergunto se ela está sonhando com algo. Não sei exatamente quanto tempo fico admirando ela dormir, mas, quando percebo, o céu lá fora já está clareando levemente. Puxo para cima o fino lençol que a cobre e delicadamente retiro meu braço de debaixo de seu corpo. Levanto e me espreguiço, indo em direção às cortinas para fechá-las, a fim de impedir que os raios de sol que logo aparecerão perturbem o sono da minha deusa. Antes de fazê-lo, porém, saio na varanda e observo toda a extensão de nossa propriedade e além, me lembrando do que Ísis disse ontem, de que ali foi onde nossos pais terminaram o relacionamento e se viram pela última vez, anos atrás. Foi onde meu pai magoou minha sogra de tal forma que ela preferiu esconder, de sua única filha, esse segredo por anos. Me preocupo em como nossa relação vai atingir nossos pais, como a mãe dela vai me receber e, mais ainda, me preocupo em como dona Helena a receberá. Minha mãe é uma pessoa extremamente difícil e acostumada com que todos façam suas vontades, custe o que custar. Mas não dessa vez. Se ela se opuser ao meu namoro, ela vai ter que lidar com a frustração de que ele vai continuar existindo mesmo contra sua vontade. Como minha namorada mesmo disse ontem, essa é a nossa história e nós já sofremos demais com decisões que foram tomadas até antes mesmo de nascermos, não é justo que continuemos sofrendo.
Uma leve movimentação no gramado abaixo de mim chama minha atenção, vejo Jhony caminhando em direção à piscina, provavelmente indo tratá-la e imagino que alguns outros funcionários também já estejam acordados, então volto para dentro do quarto e, após escovar os dentes, visto uma bermuda que pego em uma das gavetas e desço para fazer o que tinha planejado. No meio da escada, os cheiros de café recém passado e pão no forno chegam até mim e são recebidos com muito prazer pelo meu cérebro.
- Esse cheiro maravilhoso só podia ser do seu café, Soninha. - Entro na cozinha nas pontas dos pés e abraço por trás nossa cozinheira e maior responsável por essa casa, dando um beijo em sua bochecha.
- Ai menino, quer me matar? Que susto! - Ela dá um pulo e se vira, me ameaçando com a colher que estava lavando.
- Jamais! Te quero muito viva pra conhecer a mulher da minha vida e futura mãe dos meus filhos. - Pisco para ela e ela cerra os olhos.
- A responsável por você ter chegado ontem e não ter falado com ninguém? Nem mesmo um beijo nessa velha que te cuida desde menino? - Sorrio com o ciúme.
- Quando você conhecê-la você vai entender. Mas a culpa foi toda minha. Eu que estava apressado.
- Sei. Pra safadeza, né Giovanni? - Ela repreende, mas ri. Ela me conhece, sabe que poucas pessoas vieram comigo pra essa casa. - Senti sua falta. - Ela passa a mão no meu rosto. Sônia está aqui desde que eu me entendo por gente, não me surpreenderia, inclusive, se ela já estivesse quando tudo aconteceu. Ela mal sai dessa casa e sempre que a questionava sobre isso, ela me dizia que viver "presa" aqui era melhor do que enfrentar as pessoas e a selva da cidade grande, que ela que preferia assim. - Você fica tempo demais sem vir aqui. - Ela continua falando. - Só quer saber de trabalho, não quero que fique como seu avô e sua mãe.
- Isso vai mudar agora, Soninha. Tenho um ótimo motivo pra isso. - Pisco para ela. - E preciso de um favorzão seu e do Chico. Ele tá aí?
- Acabou de ir lá pra fora dar uma olhada na área externa. A gente não tinha ideia do que mais vocês aprontaram ontem à noite. - Gargalho e ela belisca minha barriga, brincando. - O que você precisa?
- A Isis é vegana. - Digo.
- Vegana, é? - Ela repete. - E como é isso? Não come bicho?
- É... também. - Coço a cabeça. - Na verdade, não come absolutamente nada que tenha qualquer coisa de origem animal.
- E como faz? - Ela pergunta verdadeiramente confusa. - Nem ovo? Leite? Manteiga?
- Não, não e não também. A não ser que sejam veganos. - Balanço a cabeça. - É por isso que preciso do Chico, pra ele ir comprar algumas coisas antes que a Ísis acorde.
- Tu tá mesmo arriado, né? Acho que nunca vi essa sua carinha antes.
- Completamente, Soninha. Eu poderia casar hoje com essa mulher.
- Ai, meu Deus! Quero ver Helena ouvindo isso. Sua mãe gosta dela? - Ela pergunta cochichando, como se minha mãe pudesse nos ouvir.
- Detesta. - Digo fazendo um bico.
- Então deve mesmo ser maravilhosa. - Não consigo conter uma gargalhada e ela faz sinal de silêncio com o dedo. - Tu vai acordar sua garota antes que a gente compre as coisas sem animal pra ela.
- Ah, Gio! Pensei mesmo ter ouvido sua voz. - Chico entra pela cozinha e me cumprimenta com um aperto de mão e um meio abraço. - Já de pé? Acabei de avisar o Jhony para não colocar nenhum produto forte na piscina porque não sabia se vocês ainda iam usar. - Ele pisca para mim.
- Ele precisa que a gente vá até o mercado, Chico. Anda, vai pegar o carro. - Sonia ô interrompe.
- Eu não posso ir sozinho? - Ele olha para ela e depois para mim.
- Ele quer coisas específicas demais, vou ter que pedir ajuda pra Marcinha lá, não sei se confio em você pra isso. - Sônia responde e Chico me olha, eu só dou de ombros.
- Tá vendo né, Gio, é assim que sou tratado todo o tempo.
- Vamos, homem, para de reclamar. Vou pegar minha bolsa. - Ela abre o forno, checa algo lá dentro e depois volta a fechá-lo, desligando-o. - E você... - Se vira para mim. - Mantenha a menina lá em cima até nós voltarmos. Vou preparar o melhor café da manhã... vegano né? - Assinto. - O melhor café da manhã vegano que ela já tomou.
Dou um beijo em sua bochecha e agradeço. Quando eles estão saindo da cozinha, ouço Chico dizer à ela "vegano, ein?" e dou risada novamente. Pego algumas uvas de um cacho na fruteira e vou comendo, enquanto subo a escada de volta ao quarto. Quando entro, percebo a cama vazia e o vento balançando as cortinas, permitindo que os raios de sol invadam o cômodo. Ando até a entrada da varanda e vejo Isis de costas, apoiada na madeira, usando uma camiseta minha que cai como um vestido em seu corpo. Vou devagar até ela, sem querer assustá-la, mas querendo gravar essa cena na minha cabeça. Quando chego perto, percebo os olhos dela fechados, recebendo a brisa do vento que também bagunça seu cabelo.