A garoa noturna sempre trazia um encanto misterioso à névoa outonal de Newport. Sempre que a noite se vestia de sereno daquela forma, os lampiões a gás da cidade, meticulosamente acesos à mão pelos mantenedores da cidade toda tarde como se ainda não houvesse magia que os ajudasse, por orgulho, tradição ou ambos, criavam caminhos de luz que desapareciam fumaça adentro, de modo que não era possível ver mais de quinze metros para dentro do nevoeiro, exceto pela carreira de pontinhos alaranjados rua abaixo.
Mal tinha o sino da cidade completado seu ritual de sete badaladas vespertinas, o céu acinzentado já havia se coberto de breu. Não havia estrela no céu que se pudesse ver; pelo menos não com a mesma facilidade que a linha de lamparinas.
A chuva fina apenas complicava ainda mais as coisas. Anshari se viu tirando os óculos de armação fina do nariz mais uma vez para resolver a situação das lentes embaçadas pela garoa antes de contemplar o céu sem estrelas novamente. — Isso vai deixar as coisas um pouco complicadas — pensou não tão alto, quase num suspiro.
O espaço silencioso entre seus pensamentos se quebrava pelos cascos dos cavalos e o rolar das rodas de carroças de carga contra a rua de pedras polidas, alguns deles indo na direção das docas onde Anshari realizava os últimos preparativos para sua grande viagem. Homens fortes, maioria deles anões-das-rochas, carregavam pesadas caixas para dentro da embarcação, uma obra de arte élfica de formosura discreta.
O Caminhante era um pouco maior que as embarcações pesqueiras que haviam aos montes no cais de Newport. As bordas em freixo decoradas com padrões florais élficos em prata contrastavam com o carvalho escurecido do casco. Um tipo de detalhamento que Anshari considerava supérfluo, mas nenhum artista a veria reclamando do nível de esmero. Era, de certa forma, uma maneira de mostrarem que se importavam com seu trabalho.
— Acredito que esse foi o último carregamento. Tudo organizadinho. — A voz potente e rouca de um dos carregadores anões tirou Anshari do seu transe, fazendo a elfa sacudir a cabeça para retornar à realidade.
— Perfeitamente, Mestre...? — Deixou a pergunta no ar enquanto levou a mão a um dos inúmeros bolsos de sua túnica azul e prata, tateando o interior pelo punhado de moedas que havia trazido justamente para aquele momento.
— Rutbarr Unha-de-Aço, Terceiro da Casa de Klargor — Respondeu o anão, peitoral estufado.
Anões tinham esse orgulho de seus nomes e heranças profundamente enraizados em sua cultura. Apenas mais uma coisa que os tornavam tão diferentes dos elfos. Anshari quase lamentou saber que ignorara metade daquele nome assim que foi pronunciado, e esqueceria o resto dentro de poucos segundos.
— Pois aqui está, Mestre Unha-de-Aço — Disse-lhe Anshari, puxando um calculado punhado de moedas de ouro e oferecendo-o ao anão. — Vinte e cinco coroas. Vinte pelo carregamento, e mais cinco pelos bons serviços.
Talvez Rutbarr não estivesse esperando uma gorjeta; elfos não eram conhecidos pela generosidade. Não que não fossem, mas costumavam trabalhar com valores exatos. Mas não seria ele a reclamar da inesperada graciosidade de sua contratante.
— Perfeitamente. Que não te falte força — Cumprimentou. Uma frase típica dos seguidores do Titã da Terra, uma tradição da qual Anshari não fazia parte.
— Nem pra você... — Disse, meio sem jeito. Aquela não era a forma de responder, ela sabia. Mas não é como se o anão se importasse. Lidar com diferentes culturas tinha desses pequenos problemas. Com um meneio da cabeça, o anão simplesmente escusou-se, indo na direção de uma das carroças de carga, enquanto Anshari limpou os óculos novamente, antes de se distrair de novo... E, de novo, não perceber a aproximação de uma outra pessoa.

VOUS LISEZ
Procissão de Estrelas
FantasyAnshari Rastro-de-Estrela é uma reverenciada astrônoma da cidade de Newport que, às vésperas do seu aniversário de 100 anos, se prepara para um grande propósito: embarcar numa missão de registrar o tamanho do mundo dentro de uma pequena embarcação...