Capítulo 4

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Eu queria cair dura no chão, na entrada do metrô de São Paulo em horário de pico, dessa forma ia ter o mesmo fim que a minha dignidade, que morreu pisoteada.

— Não acredito que está tentando esconder essa beleza rara! - leio pela tela do celular. A mensagem vem acompanhada de uma foto tremida de Thomas cruzando o portão prédio, acompanhado por mim.

" Os outros já sabem, nos vemos hoje a noite. "

Aprendi desde nova que cada indivíduo tem seu modo de lidar com a vida.

É um porre não ter controle sobre a mente de todos, mas me conformei com essa lei da natureza há alguns anos. 

Entretanto, ainda é uma tortura lidar com a mente criativa de Nico e não ter a opção de arrancar sua língua fora.

O universo tem inveja da minha beleza, tenho absoluta certeza de que este é o motivo para me sabotar seguidas vezes.

Desde que se formou, Nicolas vive trancafiado e um escritório subornando a polícia ou seja lá o que os advogados em inicio de carreira fazem para alcançar o topo. O fato é que eu nunca o vejo durante a semana, e o desgraçadinho tinha que aparecer ontem no exato momento em que Thomas estava indo embora.

Ele não se deu ao trabalho de falar comigo, e aparentemente não teve tempo de estourar a bomba na hora, mas deixou tudo perfeitamente documentado para criar o caos no dia de sua folga, hoje.

A esta altura a informação da minha vida privada já é pauta de discussão para os três desocupados que me rondam como urubus. Apenas resta aceitar que me foi arrancada qualquer oportunidade de ter paz.

Eu, Nico e os outros temos uma espécie de tradição há alguns anos, que consiste em uma reunião ao menos uma vez por mês para debater sobre quaisquer aleatoriedades e nos intrometer na vida uns dos outros.

Por sabotagem do destino (e prazos apertados no serviço), não pude comparecer ao último encontro. Então este mês, sob ameaças de invasão e chantagem emocional da parte desses três patetas, cedi para que o encontro fosse em casa.

Desde cedo, estou me preparando mentalmente para não cometer um crime de ódio ao lidar com a bagunça que eles, com toda a certeza, vão fazer. Não seria a primeira vez, e com certeza, não será a última.

Os deixo debatendo suas teorias sobre o moreno enquanto concentro toda a minha força de vontade e disciplina nas obrigações que me aguardam. Sento em frente ao computador, coloco os óculos de leitura e analiso a lista de demandas organizadas para hoje.

Passo boa parte do dia esboçando programas sob encomenda, xingando clientes por exigências absurdas, amaldiçoando a internet por estar mais lenta do que o normal e cumprindo funções entediantes.

Trabalhar de casa me livra do sufoco do transporte público. Não perco horas entupida no metrô, espremida como sardinha. O ser humano com oito horas de sono já gasta um terço da vida dormindo; adicione mais oito horas de trabalho e três de transporte, e descontando o valor de todas as contas sobra o quê? Uma miséria que sequer paga um maldito balde de pipoca no cinema sem culpa.

Amo meu país, mas é difícil não desprezar o que fazem com ele.

Felizmente, no meu modelo de trabalho eu gerencio todos os detalhes, incluindo os horários. Este tópico é uma faca de dois gumes, porque a desvantagem é que eu perco não sinto o tempo passar.

Encaro o relógio despretenciosamente e é um choque descobrir que já está escurecendo, faltam poucos minutos para Alissa e os outros chegarem. Estive tão empenhada em finalizar as metas de hoje antes de que ignorei todos os alarmes, o que significa que esqueci de beber água e comer.

          

Levanto da cadeira, faço um breve alongamento e coloco alguns petiscos para assar. Me arrasto para o banheiro com a intenção de tomar um banho rápido; nem tenho tempo de sentir as gotas caindo ou entrar em crise existencial debaixo do chuveiro, como de costume.

Estou terminando de vestir uma blusa quando o interfone toca. Não preciso nem me aproximar da porta para ouvir as risadas exageradas. Lá de baixo, o barulho que Alissa e Nicolas fazem é o suficiente para chegar até a minha janela. Esses dois, juntos, têm o poder de acordar a vizinhança inteira. Hugo provavelmente tentou mandá-los calar a boca enquanto subiam as escadas e passavam pelos outros andares, mas nenhuma ameaça nunca surte efeito com eles.

— Eu juro por tudo, se continuarem gritando desse jeito eu vou forçar todo mundo a pagar uma multa. Os vizinhos vão acabar chamando a polícia - ameaço assim que os vejo.

— Deve habitar uma senhora de oitenta e quatro anos dentro desse teu corpo. Não existe outra explicação - Nico diz me abraçando e ainda falando alto, na clara intenção de testar minha paciência.

Os três entram e continuam a conversa enquanto tiram os sapatos sujos.

— Sim, ela é uma velha ranzinza que não ama ninguém e me força a comer verduras – Alissa afirma, rancorosa.

- Você tem vinte e três anos e o paladar de uma criança, sua ingrata. Vou te deixar morrer de desnutrição – repreendo a garota enquanto ela me encara com um falso tom de birra.

— Falando em morte – Nico comenta cruzando a sala como se fosse o dono do lugar - Estávamos debatendo sobre qual de nós terá uma lápide no cemitério primeiro.Me pergunto como surgem esses tópicos de conversa.

— Por causas naturais ou acidente? Porque as estatísticas dizem que essa aqui - aponto para a mulher ao meu lado - não dura muito em nenhum dos casos.

— Calúnia! A única conclusão que chegamos é que não vai ser você. Vaso ruim não quebra tão fácil assim - ela rebate enquanto se acomoda no sofá. A constatação não me incomoda nem um pouco.

— O Nicollas é míope – Hugo contabiliza – isso aumenta de forma ridícula as chances dele. Digo, o cara pode simplesmente tropeçar na hora do banho e morrer do jeito que veio ao mundo.

— Misericórdia! – ele faz um falso sinal de cruz com as mãos – Tá repreendido. Eu só aceito morrer nú se for depois do lado de dois gostosos morenos e uma loira siliconada.

- Eu tenho pena de você. Isso soou tão desesperadamente virgem - Alissa faz graça enquanto o encara com desdém - meu rosto se contorce em desgosto para os dois.

Nico tem uma carinha de anjo e de anjo não tem porra nenhuma.

Inicialmente achavamos que era por causa daquela pose de nerd inexperiente com óculos enormes, mas hoje em dia ele os subtituiu por lentes de contato e ficou dez vezes mais perigoso.

Seus olhos naturalmente grandes e azuis entraram em destaque e dão aquele ar de pureza e submissão. Existe um charme em sua suposta inocência que atrai uma quantidade surpreendente mulheres e homens. Ele, ao contrário de Hugo, adora contar vantagem, quase todo mês nos entretem com histórias detalhadas com parceiros que caem em sua cama.

— Falando em orgia - Nico direciona seu olhar para mim - e o moreno bonitinho? Vai pegar ou eu pego?

Não me admiro com seu raciocínio distorcido. Tive que me adaptar com sua espontaneidade que quase sempre tira da zona de conforto no chute, é impossível prever - ou acompanhar - os absurdos que este homem com carinha de anjo e mente perversa inventa.

Felizmente, com o passar dos anos, aprendi a me adaptar.

— Tenta a sorte. – O encaro aceitando o implícito desafio enquanto me levanto na intenção de pegar o que deixei preparado. – Tem porções de frango empanado, cebola frita quase pronta e se alguém se habilitar a preparar uma bebida vai encontrar tudo o que precisa na geladeira. Mas já vou avisando, se algum acéfalo quebrar qualquer coisa eu não respondo por mim.

DiscrepantesWhere stories live. Discover now