❖ Áries — Carontia, atualmente
Ofender a mãe de um adversário é golpe baixo — isso é uma das primeiras coisas que qualquer um aprende na vida, logo na infância. Então, quando o soco do Xerife de Carontia acertou Áries com tanta força que ele viu brevemente as docas de pedra branca do belo porto de Savis, ele foi atordoado pela dor, mas não pela surpresa. Afinal, ele pediu por isso. Tudo para que Ígnis ganhasse uma vantagem.
E, se Áries fosse honesto, admitiria que foi bom. Rejuvenescedor, até, tanto ofender Coralie Merlot quanto ganhar o soco de seu filho em resposta. Com sangue nos dentes, ele riu, nem sequer se importando em como mais uma de suas máscaras tinha sido destruída.
— O XERIFE NÃO SABE SOCAR! — Áries gritou em um impulso, riso a ressurgir.
Copos e garrafas quebraram contra rostos e capacetes em meros segundos. Áries não pensou, rancoroso demais para se focar nas consequências. Afinal, Ígnis precisava de tempo e Navarra chegaria com a cavalaria. Atrás do balcão, Saloveni já tinha sacado seu par de socos ingleses, enquanto Aya e Marius achavam as próprias formas de ocupar as mãos. Os piratas no salão da taverna, leais aos próprios capitães e vidas, saltavam nos guardas ao próprio ritmo.
Eles o encontraram. Irenia, tanto reino quanto Deusa, sabe que ele está vivo. Áries sempre soube que esse dia chegaria, mas, ali no salão da Pontífice, usando os cacos de uma garrafa de Vinho d'Aurora como arma, ele não sentia medo. Resquícios de álcool ainda inebriavam sua mente, borrando o pouco de controle que ele mantinha sobre si, mas por que Áries deveria se preocupar? Havia vida por todo lugar, nas águas e dentro das paredes, em cada um na taverna. Deuses, ele conseguia ouvir os corações batendo, as vozes e sussurros de todos os fantasmas dos construtores daquela cidade. Deusa Carontia nos canais, Deusa Irenia nos céus — Áries estava vivo, energia nas pontas dos dedos.
Na confusão de pensamentos e memórias distantes, Áries pensou que a Rainha Merine, mãe cujo rosto ele não conseguia lembrar, estaria orgulhosa.
❖ Ígnis
Talvez seja tolice pensar que Navarra será capaz de ajudar, mas não era a primeira vez que Ígnis se via agarrado naquela esperança. Se Áries confia naquela solução, então Ígnis também, mais rápido do que suas incertezas. Ele é um tolo, mas é um tolo veloz.
O Apanha-Sol corre pelas ruas guiado pelo vento e intuição. Não vai para os telhados, ainda não, temendo a vulnerabilidade. Seu perseguidor mantém distância, mas Ígnis ainda pode vê-lo nos cantos da visão a cada curva, viela e beco nos quais se enfia. A forma borrada de uma capa e o semblante vago de um homem, traços de um fantasma saído dos túneis da cidade. Rumo às docas ao Sul, Ígnis não para, cortando multidões dançantes, rezando para se camuflar em meio ao povo mascarado, mesmo que em vão. O perseguidor parece farejá-lo.
O coração flamejante ameaça saltar por sua boca, mas Ígnis ignora a nascente dor no peito a todo custo. Já correu aquelas rotas quando criança com Nissandra, Navarra e Alexandre, então sabe de todos os riscos e segredos. Quando Ígnis se aproximou de um dos canais mais largos, evitou a ponte exposta para cruzar até o distrito seguinte, pulando pelas estacas de madeira na água nas quais os pequenos barcos eram amarrados. Um simples escorregão e ele cairia nas ondas geladas, sortudo caso não batesse a cabeça, mas os pés de Ígnis não hesitaram.
Seus joelhos se chocaram contra o chão quando aterrissou na calçada do distrito, tecido da calça se rompendo. Ígnis ignorou a dor, mas se viu olhando para trás em um reflexo incontrolável, procurando pelo perseguidor mais uma vez, olhos ardentes varrendo a escuridão dos becos pelos quais havia passado, contrastando com a iluminação gentil do lampião próximo na calçada.
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Mesmo que te mate
FantasyDez anos atrás, todos os herdeiros do trono de Irenia foram assassinados pelo atual rei no dia que ficou conhecido como a Queda Real. Todos, menos um. Áries Carmo, cujo nome real deixou em Irenia, é um jovem capitão pirata da infame Cidade-Estado de...