Capítulo 20 - Sentimento é uma arma.

306 33 139
                                    

Me vejo em um chão enlameado, onde a umidade se agarra à pele, e não há anjos ou demônios ao meu redor. O desejo de ter morrido é um pensamento recorrente, embora saiba que essa não é a minha realidade no momento. Em meio àquela escuridão opressora, consigo me ver antes da queda. Um garotinho, vestido com uma túnica branca ornamentada com delicados detalhes em azul pastel e dourado, se aproxima. Os pés dele, ao caminhar em minha direção, se sujam com o lodo, enquanto a barra de sua roupa permanece imaculada, protegida por uma mágica invisível. O eco irritante do som que seus dentes fazem ao morder uma maçã vermelha penetra na quietude ao meu redor. Meus olhos, que na infância não eram da mesma cor que a fruta, brilhavam com um azul cintilante, capturando o otimismo de uma maneira que, agora, parece distante.

Sinto uma dor aguda que se irradia pelas minhas costas; não consigo tocar minhas seis asas, que foram brutalmente arrancadas e jazem sujas no chão. Aquelas do menino à minha frente, por outro lado, são completamente brancas, exalam uma força etérea e pura.

O ar naquele lugar é um miasma de podridão, e mesmo na ausência de qualquer ponto de luz, meu reflexo no líquido negro revela chifres curvados e minhas órbitas carmesim. Estou cercado por uma escuridão que se alimenta da minha própria dor. O sangue escorre lentamente pela minha testa, em contraste com o meu terno branco, que está parcialmente manchado da cintura para baixo.

─ Você não se cansa de cair... ─ ele diz, negando com um semblante de pena enquanto se agacha até a minha altura. ─ Quantas vezes mais? ─ a incredulidade em sua voz é um lembrete constante de minhas falhas.

Suspiro pesadamente, e com uma de suas mãozinhas delicadas e pequenas, ele me oferece um paninho branco e brilhante, uma tentativa de me ajudar a limpar meus dedos e esfregar minhas bochechas, mas o esforço apenas resulta em manchas mais profundas na minha pele.

─ Quantas vezes eu precisar. ─ encolho minhas pernas e me abraço, buscando conforto em um gesto infantil de proteção. ─ Encontrei algo que me faz querer continuar a sobreviver à eternidade. Não é como a construção do universo, não é como Lilith... ─ sussurro, apoiando meu rosto em meus joelhos, como se eles pudessem me oferecer algum tipo de abrigo. ─ É como conseguir respirar depois de milênios sufocantes, como sentir a liberdade, ou, quem sabe, como descobrir a essência do que significa ser humano.

─ Um mero mortal, um pecador. ─ a risada infantil e doce fere meu coração. ─ É sua cara fazer algo assim.

Não gosto de encarar meu eu criança, esse pequeno sonhador cuja queda foi causada por erros e enganos. É comum que as pessoas se emocionem ao serem questionadas sobre o que diriam a si mesmas no passado. Se eu tivesse essa chance, diria a Samael Morningstar que agisse pela razão, não pela paixão desenfreada que o consumiu.

─ Não vai conseguir salvá-lo se continuar aqui. ─ sua boca captura pedaços da maçã novamente. ─ Aquela mulher... ela é malvada. ─ a delicadeza de sua mão faz um breve carinho em meu cabelo, um gesto que busca encorajar. ─ Não pode desistir agora!

─ Essas coisas cansam mais do que você imagina. ─ aproveito aquele afago, sentindo um traço de esperança se acender em meio à dor.

─ O que você realmente deseja? ─ sua voz é suave, como um sussurro perdido entre as sombras. ─ Alguma vez você pensou que poderia voltar?

Olhando nos olhos reluzentes do menino, sinto um misto de expectativa e desespero. Isso me leva a recordar momentos em que a inocência ainda pulsava dentro de mim, antes do peso das escolhas que se tornaram armaduras difíceis de carregar.

─ O desejo de retornar é um eco contínuo. ─ confesso, olhando para o chão coberto de lodo. ─ Às vezes, me perco em um mar de memórias onde a luz e a bondade ainda existiam. Mas a verdade é que a queda moldou minha essência, transformando o que eu era em algo mais sombrio, mais complexo. A eterna busca por redenção se confunde com a dor de um passado que não posso alterar.

BAD THINGS · radioappleOnde histórias criam vida. Descubra agora