A enorme carroça de rodas largas finalmente repousou na beira do caminho de terra cheio de gramíneas. Era uma encosta de um aglomerado de pequenas montanhas, uma região sem nada muito interessante, motivo pelo qual a estrada era tão descuidada e tomada de plantas de tamanhos variados que iam de pequenas ervas daninhas até arbustos tão largos que poderia esconder um javali.
A condutora desceu de seu posto. Sua pele parda brilhando ao sol e seus cabelos pretos ondulados sendo balançados pela brisa da montanha. Seus trajes denotavam sua vocação, ela usava o robe dos monges da ordem dos Punhos Flamejantes da Gentileza, ou como os aldeões em volta do mosteiro costumavam chamar, os Zhonglei, os Gentis.
Sua ordem monástica era conhecida por evitar o combate e a fatalidade sempre que possível mas clamavam o fogo dentro de si quando necessário para proteger os pobres e os desvalidos. Suas mãos cobertas de faixas soltaram os arreios e ela fitou a gruta selada com a pedra. Ela olhou por longos minutos antes de começar a descarregar a carroça.
Quase duas horas foram necessárias para levar todo o conteúdo até a pedra que selava a entrada. A monja sabia que faria a tarefa em bem menos tempo mesmo com a pequena subida de cinquenta metros que a separava da carroça. Mas ela sabia o efeito que abrir a gruta teria sobre ela. Porém nenhuma tarefa dura para sempre. Ela encarrou a pedra enorme e respirou. Juntou todo seu ki e em um movimento rápido agarrou a rocha com os dedos e a moveu para o lado até que fosse colocada ao lado da entrada da cavidade. Ela a adentrou. Doís passos apenas, mas o suficiente para com a luz que agora entrava ver o que estava contido na pequena gruta. Ali estava a terceira guerreira mais bem treinada da história do monastério, que mediou dezenas de acordos de paz, que derrotou déspotas com seus punhos nus, que carregou dezenas de vítimas da enchente do rio Lai por dias sem se abater, lá estava Anya Baohude, A Protetora segundo seus irmãos de monastério, lá estava ela paralisada. Seu suspiro foi tão forte que ecoou nas paredes.
Passo a passo ela foi chegando mais próximo até poder tocar o esquife. Um conjunto de crias pontudo que formavam um caixão, uma jaula, uma prisão pra uma mulher. Os olhos projetados em puro terror perpetuamente. Ali estava aquela que ela ajudou a nomear. A amada da monja guerreira.
Anya abaixou até que sua testa tocasse o cristal na região mais próxima possível da testa de sua amada. Tocou e a olhou nos olhos, o que Anya sempre fazia quando sua amada tinha crises, porém os olhos verdes da amada confinada sempre a acalmavam também. Foi quando um som de algo metálico tocando o vidro inundou as paredes rochosas. Os olhos de Anya desceram até ver que seu colar sai de dentro do robe e o pingente repousou sobre os cristais. Quase na direção do pingente idêntico que a dama na clausura também carregava.
O pingente trazia um círculo cortado na diagonal por uma cunha. As ordens monásticas guerreiras em geral não veneravam um deus do panteão de Filsdar em específico porém aquele era o símbolo da deus da ruptura, da mudança e do duelo, era o símbolo de Diakopi.
Diakopi assumia várias formas, de uma gnoma furtiva, de um orc musculoso, de uma elfa ágil ou mesmo um draconato intimidador. Porém por milênios seus adoradores sempre o retratavam na forma de um rapaz altivo e belo, um guerreiro de semblante plácido e belo. Um dia porém em uma maquinação movida pelo conflito de naturezas, o deus da conservação e status quo Manuth presenteou o deus duelista com uma pulseira. Ela formará um escudo que nunca o deixará ser ferido por nenhuma força ele disse, porém que lhe era um presente presente muito caro a ele e que exigia que fosse prometido nunca retirar a pulseira. Lisonjeado ele fez a promessa e colocou a pulseira. Instantaneamente a divindade tomou a forma de uma mulher de ombros largos, cabelos pretos longos e corpo tonificada. Uma das formas que usava em suas jornadas de combate. Só que a mudança não foi escolhida. Estranhando tentou mudar novamente para uma das demais personificações só então percebendo que não conseguia. As risadas de Manuth demonstravam o ardil porém elas cessaram quando o deus estático viu o semblante plácido de Diakopi. Você achou que afetaria meu ego se meus seguidores passarem a me ver como uma mulher? Era esse seu plano? Eu sou a mudança, a ruptura. Os que me adoram estão sempre se reinventando e se descobrindo. Sempre foi uma honra tomar essa aparência pois ela é parte de quem sou. O duelo impõe regras e não vou te dar essa satisfação, as que você impôs foram fraudulentas. A deusa então tirou o bracelete e o guardou porém manteve a forma. Não tenho vergonha de parte de quem sou e mesmo sendo a deusa da mudança eu escolho manter essa aparência daqui ao fim dos tempos. A deusa então passou dias pensando sobre o ocorrido e então contemplou seus adoradores no plano material. Vários deles estavam presos a uma forma que não condiziam com seus interiores. O maior duelo destas pessoas ocorria não no campo de batalha mas dentro de seu âmago. Desde então a mais de duzentos anos qualquer um que se provasse no campo de batalha, em favor do progresso da sociedade , da mudança do mundo ou mesmo apenas desejasse a transformação com todo seu ser, poderia receber a bênção de Diakopi e adequar seu exterior ao que já era em alma.

YOU ARE READING
A matéria prima que se entrega
FantasyUma historia de descoberta e aceitação , em um mundo de fantasia medieval envolvendo duas pessoas trans