Capítulo 29

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      Apoiei o tecido da camisa sobre os olhos por alguns segundos, mas o sangue insistia em descer sobre as minhas sobrancelhas. Resmunguei alguns palavrões desistindo de limpar. O cheiro de comida fez meu estômago roncar. A voz feminina me fez saltar levemente.

— Trouxe pra você.

Flora sentou ao meu lado apoiando o prato com bifes e legumes no chão, antes de tocar eu tive receio. Era uma linha tênue entre confiar neles de novo e arriscar. Ela me observou encarar a comida.

— Pode comer, fui eu que preparei a comida. –Ela tentou sorrir, mas o semblante triste tomava seu rosto.

Suspirei levemente encarando as árvores acima de nós que rodeava a caverna. senti o sangue descer sobre minhas têmporas. Ela segurou minha mão no ar, veio com a sua mão esquerda apoiando um pouco de sal envolto numa folha verde escura, ardeu um pouco e eu fiz careta.

— Obrigado... –saiu quase como um murmuro.

Ela ajeitou a folha com delicadeza a prendendo com mel e um barbante do seu vestido, suas unhas arranharam a minha pele enquanto ela firmava os dedos na minha bochecha. Por mais que aquilo tudo não fosse culpa minha eu ainda me sentia culpado, eu não achei que alguns deles iriam se arriscar assim e sinceramente eu nunca imaginei que levaria um soco de seu pai. Ele ainda não estava falando comigo e sempre repreendia Flora por me levar comida e água. Não o encarei desde que me bateu. Estava reprimido pelo medo e pela mágoa.

— Eu sinto muito, de novo. Você é a pessoa que mais recebe as minhas desculpas sabia? Isso é um privilégio. –Ela sorriu e eu a encarei.

— Eu não queria nada disso. –Apertei os lábios ao dizer.

Ela tombou a cabeça de lado.

— Não foi culpa sua, você mesmo viu as pessoas correndo desesperadas em direção a divisão. Poderia ter sido muito pior.

Os aldeões passaram o dia dormindo na caverna, aquele fim de tarde estava chuvoso, escuro e a brisa estava mais fria. Megan ainda vigiava a caverna, os olhos vermelhos percorriam toda a extensão das colinas, empoleirada numa das árvores ela encarava além da aldeia. O semblante triste me incomodava, mas eu não perguntei. 

Movi devagar para fora da caverna assim que a chuva parou, os pingos gelados deslizavam pelas folhas das árvores fazendo poças pequenas de frente a caverna. Peter estava sendo cuidado, e às vezes nossos olhos se cruzavam piedosos e tristes. Flora trocou a folha sobre a minha sobrancelha esquerda antes de eu sair.

Encarei o sol se pôr entre as nuvens, a névoa escura agora se movia no céu como uma fumaça de fogo. Parecia estar sendo varrida do céu, se movendo rápida com a neblina. Não tinha me dado conta de quanto tempo eu estava preso nesse lugar, não via um calendário a tanto tempo que me esquecia a cada dia. As horas passavam mais rápidas, mas não sei quão rápida. Megan agora descia da árvore com rapidez, deixando que o acúmulo de água caísse sobre seus cabelos. Me aproximei devagar e ela sorriu ao me ver, um sorriso leve e triste.

— Ela é boa nisso. Está quase curado. –Ela apontou para minha testa. Não respondi. A puxei para mim e lhe beijei. Quando nos soltamos, seus olhos vermelhos me encaram voltando lentamente a cor azul. Sorri de leve tirando a mecha de cabelo sobre sua bochecha.

— Precisamos passar mais tempo juntos. Eu quero guardar na memória tudo que eu vivi aqui, inclusive você. –Sorri. Ela fechou os olhos deitando seu rosto na minha mão direita.

— Queria guardar seu perfume, mas você está cheirando a eles agora. –Ela sorriu ao dizer me olhando.

— E que cheiro eles têm? – Quis saber, franzi a testa.

Através do Espelho {CONCLUÍDA}Onde histórias criam vida. Descubra agora