Observo o relógio em cima da escrivaninha. Os pequenos números em vermelho marcavam 4:21. Não me contenho. Não depois disso. Não depois de ontem. Saio de casa às pressas, sem me dar ao trabalho de calçar sapato algum.
Abro a porta da frente, fechando-a assim que eu saí. Faço o mesmo com o portão. Ando o mais depressa que consigo, evitando correr até chegar na cerca da casa ao lado. Torço para que ele não tenha trancado. Agradeço quando vejo o cadeado aberto, apenas prendendo o portão no seu devido lugar. Ando até a casa, só hesitando quando paro em frente à porta. Bato algumas vezes, sem resposta.
Quase me arrependo ao ver o rosto sonolento e assustado de Miguel me recebendo ao abrir a porta. Quase.
- O que houve, Anne? - ele pergunta, coçando os olhos e tentando mantê-los abertos.
- Aquilo foi uma vontade minha. É uma vontade minha.
- Do que exatamente você está falando?
- Estou falando sobre ontem. Eu sinto muito por ter hesitado e não ter te dito ontem mesmo. Mas eu estava tão - ele fala meu nome. - insegura de ter ultrapassado algum limite seu e eu entendo você ter recuado e - ele fala o meu nome novamente.- sinceramente eu não te julgo e espero que saiba que se por acaso quiser esquecer o que aconteceu ontem eu realmente compreendo...
Ele me encara, um pouco mais acordado do que antes.
- Terminou? - ele questiona.
- Sim. - digo, envergonhada.
Miguel sai do marco da porta, dando alguns passos e parando bem na minha frente. Seu corpo estava quente. Sua mão repousa do meu rosto, e ele se inclina suavemente, encostando a sua testa na minha.
- Anne... - ele começa. O interrompo, sem notar.
- Eu só queria que soubesse que... - ele me beija. Sem aviso algum. Sem rodeios ou introduções. Ele me mantém no lugar, pressionando nossos corpos e deslizando suavemente a sua mão até a minha nuca, me arrancando o chão debaixo dos meus pés. Ele se afasta, me olhando enquanto permaneço em silêncio, quase ofegante.
- Se eu soubesse que conseguiria te deixar sem palavras com um beijo, teria feito antes. - ele brinca, sorrindo.
Eu não consigo conter um sorriso, mesmo com as bochechas ardendo. A leveza no ar se mistura à intensidade do momento, e por um instante, tudo o que importa é ele e a confusão deliciosa que se formou na minha mente assim que nossos lábios se tocaram de novo.
- Como se alguma coisa conseguisse me deixar sem palavras. - retruco.
Miguel ri, um som que ecoa suavemente pela noite silenciosa. Ele se inclina um pouco mais, como se estivesse querendo me beijar novamente.
- Onde caralhos estão os seus sapatos? - ele pergunta, notando que meus pés estão perdidos na grama.
- Ficaram do lado da cama. Na urgência, não me dei ao trabalho de calçá-los.
- Cacete, Anne... - ele reclama. - Vem, deixa eu pegar um chinelo para você.
Penso em ficar parada aguardando que ele retorne, mas desconsidero assim que ele entra pela porta. O acompanho de longe, olhando o interior da casa. Apesar do exterior realmente necessitar de uma pintura, o lado de dentro era extremamente aconchegante. Tudo estava devidamente em seu lugar, apesar de vê-lo correr para pegar algumas roupas q estavam dispostas em uma cadeira no canto da sala. Sorri. Era nítido que ele não esperava visita, principalmente agora. O vejo sumir em um dos corredores, mas agora evito segui-lo. Vejo uma parede com algumas fotografias de família, me aproximando devagar para observá-las de perto.
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Sangue Sob A Lã
RandomApós o assassinato brutal de sua mãe seguido do suicídio de seu pai, Anne se adapta à ideia de viver com os tios em uma casa cheia de lembranças da infância que ela preferia esquecer. À medida que o passado e o presente colidem, Anne está envolvida...