1.0

93 8 2
                                    

Lauren diz que tenho alma de poeta. Durante as nossas longas e exaustivas sessões de terapia, ela gosta de reforçar que, com o passar dos anos, eu me transformei num fantasma. O que irrita profundamente o meu ser é o facto de ela ter toda a razão no que diz. As olheiras profundas que habitavam a pele debaixo dos meus olhos, o meu corpo cada vez mais magro e alto e a minha disposição nula para responder às suas perguntas intrometidas faziam com que a sua ridícula teoria sem fundamento se começasse a confirmar. Supostamente o problema não tinha sido a minha infância, a minha adolescência ou os abusos que sofri em pequeno. A raiz do problema, na opinião da minha muito profissional psiquiatra, estava na minha alma de poeta sofrido que impede que eu saia do estado de depressão onde me encontro.

O que acabei de referir são, claro, tudo palavras dela. Nenhuma das atrocidades acima descritas saíria da minha boca por uma simples razão.

Não acredito em felicidade nem em tristeza como sentimentos isolados. Sem querer deixar a minha tão criticada alma de poeta saltar cá para fora, encontro-me muito familiarizado com a tristeza e sou pouco amigo da felicidade. Mas algo que sei com toda a certeza é que não podemos ser completamente felizes ou completamente miseráveis. A única forma de um ser humano conseguir sentir felicidade é já ter passado pela tristeza extrema; só quando desejamos a morte com tudo o que temos é que é realmente possível, depois, desejarmos viver como nunca. Os dois sentimentos coexistem, e é assim que as pessoas conseguem viver a sua vida de forma minimamente equilibrada.

O único problema, naquele momento, é que a minha teoria tinha ido por água abaixo enquanto a de Lauren continuava em pé. Não me lembrava de sentir felicidade há muito tempo, mas a tristeza visitava-me todos os dias. Não só à noite, quando as memórias me assombram, mas sempre. Há sempre uma sombra a perseguir-me e a relembrar-me o quão destinado a sofrer estou. Já não encontrava beleza no vento que me soprava na cara e fazia as folhas caídas do Outono voarem; já não encontrava beleza no Sol que se levantava todas as manhãs e me acordava - me acordava dos sonhos menos agradáveis que tinha à noite, mas que me obrigava a encarar o pesadelo que a minha vida era de dia. Quando estamos tão enrolados e presos na nossa própria tristeza é difícil nos interessarmos por qualquer coisa.

Mas, ao crescer, consegui interessar-me por alguma coisa, e talvez fosse daí que a fama da minha alma de poeta tivesse aparecido: livros. Livros interessavam-me. Quando tiramos um livro da prateleira e o desfolhamos cuidadosamente, não percebemos que estamos a agarrar no objeto mais valioso e frágil do Universo. Cada livro, sem excepção, tem uma alma. Ou talvez mais. A alma de quem o escreve e cospe tudo o que já sentiu para as suas páginas, e a alma de quem lhe toca, lê e acaba por vivê-lo.

Assim, era impossível eu, Luke Hemmings, ter alma de poeta. Talvez tivesse a alma de muitos poetas, pois todos partilharam a sua dor, as suas alegrias, glórias e viagens comigo. Talvez fosse esse o problema.

Mas Lauren não concordava. Há 12 anos atrás, com apenas 5 anos e uma vontade de pontapear e destruir tudo o que encontrasse à minha frente, entrei naquela mesma sala, sentei-me irrequietamente na mesma cadeira e pronunciei exatamente as mesmas palavras que pronunciara quando entrara há cerca de 5 minutos atrás: nenhumas. Em 12 anos, nunca comuniquei de nenhuma forma com Lauren. Até aos meus 10 anos, ela mandava-me sempre desenhar o que eu quisesse e eu acabava sempre por gastar todos os seus lápis vermelhos e o único lápis preto que a caixa que ela me dava para as mãos possuía. Ao observar os meus desenhos, um conjunto de riscos pretos, vermelhos e caras tristes por todo o lado, a psiquiatra olhava para mim com pena, abanava a cabeça, como se as minhas obras de arte mórbidas e trágicas não pudessem ser consideradas um progresso e anotava qualquer coisa no meu processo. Ao início ficava triste com a sua expressão desiludida; nunca lidei muito bem com o facto de desiludir os outros, mas, 12 anos depois, já estava habituado ao seu olhar de desilusão e até algum desespero.

Você também vai gostar

          

Entrou na sala 25 minutos depois de eu entrar. A sua secretária dissera-me que ela se tinha atrasado um pouco devido ao trânsito mas que eu podia entrar, portanto foi exatamente isso que fiz. Instalei-me na mesma sala de sempre, na mesma cadeira de sempre e na mesma posição de sempre: pernas abertas, braços cruzados à altura do peito e uma expressão desligada e cansada estampada no rosto.

'Ah, Luke, ainda bem que a Meryl te disse para entrar. Desculpa o atraso.'

Eu não devia desculpá-la era por ela continuar a insistir que eu fosse àquelas estúpidas sessões. A única coisa que sentia era ansiedade ao estar ali sentado, e não a paz que eu tanto ansiava.

 Lauren sentou-se por trás da sua secretária como costumava fazer desde há tantos anos para cá, e tirou o meu processo de um das prateleiras que usava como arquivo pessoal das fichas dos seus pacientes ou algo do género. Reparei que a minha pasta era demasiado antiga, estava demasiado desgastada e havia demasiadas folhas a completá-la.

Equilibrou os seus óculos no nariz, tirou uma caneta de um dos potinhos próprios para arrumar material de escritório e preparou-se para começar a tirar os seus normais (e sem sentido) apontamentos.

Aí vamos nós.

'Queres dizer-me como te sentes hoje, Luke?'

Não é como se eu fosse rude ao ponto extremo de a ignorar completamente. Eu respondia às suas perguntas, mas fazia-o na minha própria cabeça.

Gostava de comparar a minha vida a um círculo; não a um círculo perfeitamente desenhado a compasso, mas sim a um círculo desenhado por uma criança, um círculo completamente irregular e mal desenhado mas, ainda assim, um círculo. Um círculo sem fim. O pior é que não sabia como apagar um pouco da linha que completava o círculo de forma a quebrar a tão irritante figura geométrica, nem tinha a capacidade de agarrar na folha onde esta estava desenhada e amarrotá-la, atirando-a de seguida para longe.

Lauren sabia que eu não ia responder, pelo menos em voz alta. 12 anos tinham-lhe ensinado muitas coisas. Em vez de insistir, suspirou e escreveu algumas anotações na folha já amarelada pelo tempo. «Não tem cura, precisa de ser internado, caso extremamente grave, não abre a boca há 12 anos», deviam ser algumas das belas frases que ela ia escrever naquele papel e enviar para os meus tutores. Era o que ela sempre fazia, mas nunca tomava uma atitude radical, como por exemplo internar-me para o resto da minha vida. E eu preferia que ela não o fizesse.

De rosto trancado e com uma expressão séria, continuei a fitar os Vans desgastados que adornavam os meus pés. Olhar para Lauren era estranho e deixava-me ansioso, e apesar de já se terem passado tantos anos, continuava sem saber como agir à frente dela. Desejava que ela sentisse o mesmo em relação a mim, mas acho que ela me via como uma experiência pessoal sua qualquer, já que as perguntas não deixaram de chegar.

'Achas que algum dia vais conseguir ultrapassar o que se passou quando eras mais pequeno?'

Teria doído menos se ela me tivesse espetado uma das suas canetas de pontas tão afiadas no braço. As memórias são uma coisa muito problemática, na minha opinião. É suposto as memórias serem a lembrança de algo bom, algo que nunca esqueceremos nem o pretendemos fazer. Algo que recordamos entre risos e faces coradas com amigos, família ou até mesmo desconhecidos. Mas as minhas memórias não me aquecem o coração; pelo contrário, as minhas memórias rasgam-me por dentro, torturaram-me a cada segundo da minha vida. Eu quero esquecê-las. Quero desaparecer juntamente com elas.

Talvez eu não tenha alma de poeta.

Talvez tenha apenas o pior passado de sempre.

Lauren parecia estranhamente impaciente e chateada com o meu silêncio naquele dia. Pousou a caneta levemente em cima da secretária, vendo que eu não lhe ia responder mais uma vez, e elevou a voz um pouco mais do que o habitual.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: mar 26, 2016 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

siamese > luke hemmingsOnde histórias criam vida. Descubra agora