Capítulo 34

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Pouso os talheres sobre o prato, dado como terminada a minha refeição. Encosto o meu corpo no sofá, levo a mão à barriga.

-Tu não vais comer mais?!

-Eu comi imenso – aproximo-me apontando para o prato

-Bom tu vais ter de te habituar porque os meus dotes culinários aumentaram bastante. – rio-me

-Passando pela tua maravilhosa habilidade para as simples e lendárias torradas. – junta-se a mim, tentamos fazer das nossas gargalhadas algo baixo aos ouvidos dos outros

No canto de uma mesa, o som faz-nos parar, olhar. As suas gargalhadas, essas são altas. Homens corpulentos, mangas arregaçadas com um aspeto descuidado, movimentos despreocupados, corpos a atirarem-se contra as cadeiras, a dar pancadas insonoras na mesa. Eles gozam. Gozam pelas marcas que tenho no corpo, por aquilo que me fizeram. Há um espaço livre na cabeceira. É o de Dixon. Ele vai sentar-se ali em breve e eu vou ter de assistir. Vou ter de sentir. Vou ter de morrer mais um pouco. Mas eles não se importam, nunca se importaram, e depois de um de cabelo tão negro como a escuridão segredar algo, é o necessário para fazerem mais troça, enquanto as suas mãos atrevidas planeiam torturar-me, as suas bocas nojentas ameaçar-me, marcar-me, as suas mentes insanas quebrar-me. Apenas um pouco mais, é o que resta. As suas unhas a cravarem-se no meu peito, o suor a cobrir o meu corpo, os nossos suores. E depois há línguas com saliva que me dá vómitos a entrar na minha boca. São agulhas a cravarem a minha intimidade, cada vez mais. Dores insuportáveis a cada segundo, a cada minuto, e a sequência é sempre a mesma. Eternamente.

-Blair. - toca na minha mão

Quer massacrar-me de novo. Afasto. E é num clarão que tudo volta, a realidade. O seu rosto chocado, os lábios numa linha fina enquanto eu vejo a carranca na sua testa. Harry. É apenas o Harry.

-Desculpa. – apanho a minha mala e sinto que é um raspão quando o meu corpo atravessa o restaurante até ao gelo queimar os meus ossos

O gelo que eu senti durante um mês. O gelo que congelou o meu coração, que destruiu cada célula. Mas depois o meu filho veio e conseguiu reconstruir cada ponta do meu corpo, o pequeno embrião foi suficientemente forte para isso. Quando chegou a vez do meu coração, ele simplesmente não conseguiu, porque era demasiado. E morreu. Morreu depois de trazer de volta toda a sensibilidade, o sentimento, a dor. E foi apenas o Harry quem conseguiu aquecer a fortaleza gelada do meu coração, foi ele que voltou a trazer-me a sensação de vida, que fez o meu batimento cardíaco acelerar de novo. Foi sempre ele, por mais que houvesse. E agora eu afastei-o.

-Blair. – é baixo, um sussurro mais perto do que poderia imaginar, um descanso na sua voz

Raspo o braço na minha bochecha molhada, tento esconder-me o máximo possível. Cruzo os braços no peito, encolho-me, sinto-me tão pequena aqui. Não o olho, tenho ainda o seu corpo ao lado do meu.

-Eu quero ir embora.

Não há nada em resposta. Eu conto até três. Faço-o não uma, mas duas vezes. E garanto-me que ele ainda está ali quando olho para o seu rosto não destroçado, não deprimido. Não chocado ou magoado. Não como eu pensava ter feito. Vira o seu corpo na direção do parque de estacionamento na próxima esquina, mas ainda me consegue olhar de lado, esperar por mim. E ele não perguntou o porquê, o que aconteceu. Apenas aceitou.

Os nossos corpos caminham lado a lado, não há um toque – apesar dos apenas cinco centímetros que devem haver entre nós – e não há uma tensão no ar, apenas na minha cabeça, nas imagens da irrealidade que senti.

Abro a porta do carro por mim mesma antes que ele o possa fazer e num minuto apenas ele arranca.

Começa a chuviscar, o céu é enfadonho. Há um cruzamento daqui a duas ruas que nos vai dar a escolha de se seguimos para Summetown ou vamos para uma das redondezas de Oxford. E na minha cabeça eu tenho a ideia de que ele apenas tem de me levar para sua casa, de me fazer esquecer tudo o que aconteceu. Mas vejo como não hesita na velocidade, como não há a intenção de em breve cortar pela esquerda.

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-Eu não quero ir para casa.

Seria o meu pior pesadelo agora. Ainda sinto o bafo dos meus choros contra as paredes, o tom diferente do chão atrás do sofá, os relógios contrários.

E é assim que ele desacelera, por mais insignificante que seja. Ele não vai planear outro lugar. A nova rua, são poucos metros até ao cruzamento. E quando a minha mente se tenta absorver da esquerda, ele escolhe a direita e eu sinto um alívio no meu coração.

O carro desce pela rampa até à garagem. Apaga os faróis, saio primeiro do carro.

Vejo como ele não acompanha o meu raciocínio para subir a rampa e apenas apanha o comando do bolso, fechando a garagem, e meio que me conduz para um canto escondido quando se aproxima mais de mim e me corta a possibilidade de seguir caminho para onde está agora.

Liga um interruptor. É um elevador. As portas dão um estalido para abrir, fazem-me querer voltar para trás. Ele entra e parece um segundo interminável quando o meu pé troca o chão escuro da garagem pelo meio iluminado branco do elevador. As minhas mãos apertam o ferro de suporte atrás das minhas costas. Cruzo as pernas, tentando parecer calma, sentir-me calma. E ora sinto que o consigo, ora sinto que estou bem longe disso. Sinto o meu coração a descer-me ao estômago à medida que sinto o subir passar por mim. Há apenas o piso menos um e zero, para onde vamos. Imagino que será a receção.

-Estás demasiado tensa. – sou apenas rapidez a olhá-lo, ele mantém o olhar focado na sua frente, aposto que nem chegou a olhar para mim

-Não gosto muito de elevadores. – tento manter a minha voz firme, estou mais apavorada que o habitual, ainda sinto a minha cabeça zonza de há pouco

São mais quatro segundos para as portas se afastarem e eu deixar as minhas mãos escorregarem pelo metal. Não se movimenta, mantem-me assim ali para o olhar e esperar qualquer coisa mesmo com a tentação incontrolável que tenho de saltar para fora daqui.

Os seus olhos caem finalmente em mim com uma atenção que quase me esmaga.

-Tu tens um pânico incontrolável por eles. – e apenas em dois passos já pisa o chão do outro lado e eu sei que apenas demoro um segundo a fazer o mesmo, mas enquanto isso estou estupefacta pelo comentário

Eu tenho um pânico incontrolável por eles.

Percebo que estamos na receção do hotel segundos depois, dirigimo-nos ao habitual elevador. Aquele em que o meu medo diminui muito mais em comparação ao outro. Cruzo os braços, estou na parede perpendicular à de Harry, ele olha para os sapatos gastos na frente enquanto os inclina para um lado e para o outro. Paramos, dou um passo para fora do elevador e espero que ele me passe para destrancar a porta do apartamento. As chaves caem em cima do móvel do hall, eu sigo-o até à cozinha. Tira um café para si, encosta-se à bancada no instante seguinte a bebê-lo. Está tão perdido nos seus pensamentos como eu poderia estar, deve até esquecer-se da minha presença. Coloco o meu corpo à frente do seu, faço-o olhar-me.

-Desculpa. – brinco com os cordéis do meu casaco, espero que ele me possa ajudar com uma resposta mas ela não existe, faz-me suspirar interiormente e continuar – Não eras tu. Quer dizer, eras mas... - toca-me na mão, é como mandar-me parar e não sei se hei-de sentir alívio por isso

E é uma tortura quando ele não diz o que pretende, quando me consome com o olhar, me hipnotiza, faz o meu coração apertar-se com medo do que virá a seguir.

-Talvez devêssemos ir com mais calma. – afasta o toque quando cruza os braços

-O que queres dizer com isso? – engulo em seco

The Shadow 2 - LostOnde histórias criam vida. Descubra agora