Pouso os talheres sobre o prato, dado como terminada a minha refeição. Encosto o meu corpo no sofá, levo a mão à barriga.
-Tu não vais comer mais?!
-Eu comi imenso – aproximo-me apontando para o prato
-Bom tu vais ter de te habituar porque os meus dotes culinários aumentaram bastante. – rio-me
-Passando pela tua maravilhosa habilidade para as simples e lendárias torradas. – junta-se a mim, tentamos fazer das nossas gargalhadas algo baixo aos ouvidos dos outros
No canto de uma mesa, o som faz-nos parar, olhar. As suas gargalhadas, essas são altas. Homens corpulentos, mangas arregaçadas com um aspeto descuidado, movimentos despreocupados, corpos a atirarem-se contra as cadeiras, a dar pancadas insonoras na mesa. Eles gozam. Gozam pelas marcas que tenho no corpo, por aquilo que me fizeram. Há um espaço livre na cabeceira. É o de Dixon. Ele vai sentar-se ali em breve e eu vou ter de assistir. Vou ter de sentir. Vou ter de morrer mais um pouco. Mas eles não se importam, nunca se importaram, e depois de um de cabelo tão negro como a escuridão segredar algo, é o necessário para fazerem mais troça, enquanto as suas mãos atrevidas planeiam torturar-me, as suas bocas nojentas ameaçar-me, marcar-me, as suas mentes insanas quebrar-me. Apenas um pouco mais, é o que resta. As suas unhas a cravarem-se no meu peito, o suor a cobrir o meu corpo, os nossos suores. E depois há línguas com saliva que me dá vómitos a entrar na minha boca. São agulhas a cravarem a minha intimidade, cada vez mais. Dores insuportáveis a cada segundo, a cada minuto, e a sequência é sempre a mesma. Eternamente.
-Blair. - toca na minha mão
Quer massacrar-me de novo. Afasto. E é num clarão que tudo volta, a realidade. O seu rosto chocado, os lábios numa linha fina enquanto eu vejo a carranca na sua testa. Harry. É apenas o Harry.
-Desculpa. – apanho a minha mala e sinto que é um raspão quando o meu corpo atravessa o restaurante até ao gelo queimar os meus ossos
O gelo que eu senti durante um mês. O gelo que congelou o meu coração, que destruiu cada célula. Mas depois o meu filho veio e conseguiu reconstruir cada ponta do meu corpo, o pequeno embrião foi suficientemente forte para isso. Quando chegou a vez do meu coração, ele simplesmente não conseguiu, porque era demasiado. E morreu. Morreu depois de trazer de volta toda a sensibilidade, o sentimento, a dor. E foi apenas o Harry quem conseguiu aquecer a fortaleza gelada do meu coração, foi ele que voltou a trazer-me a sensação de vida, que fez o meu batimento cardíaco acelerar de novo. Foi sempre ele, por mais que houvesse. E agora eu afastei-o.
-Blair. – é baixo, um sussurro mais perto do que poderia imaginar, um descanso na sua voz
Raspo o braço na minha bochecha molhada, tento esconder-me o máximo possível. Cruzo os braços no peito, encolho-me, sinto-me tão pequena aqui. Não o olho, tenho ainda o seu corpo ao lado do meu.
-Eu quero ir embora.
Não há nada em resposta. Eu conto até três. Faço-o não uma, mas duas vezes. E garanto-me que ele ainda está ali quando olho para o seu rosto não destroçado, não deprimido. Não chocado ou magoado. Não como eu pensava ter feito. Vira o seu corpo na direção do parque de estacionamento na próxima esquina, mas ainda me consegue olhar de lado, esperar por mim. E ele não perguntou o porquê, o que aconteceu. Apenas aceitou.
Os nossos corpos caminham lado a lado, não há um toque – apesar dos apenas cinco centímetros que devem haver entre nós – e não há uma tensão no ar, apenas na minha cabeça, nas imagens da irrealidade que senti.
Abro a porta do carro por mim mesma antes que ele o possa fazer e num minuto apenas ele arranca.
Começa a chuviscar, o céu é enfadonho. Há um cruzamento daqui a duas ruas que nos vai dar a escolha de se seguimos para Summetown ou vamos para uma das redondezas de Oxford. E na minha cabeça eu tenho a ideia de que ele apenas tem de me levar para sua casa, de me fazer esquecer tudo o que aconteceu. Mas vejo como não hesita na velocidade, como não há a intenção de em breve cortar pela esquerda.
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The Shadow 2 - Lost
FanfictionEsta é a já conhecida história de Blair e Harry. Agora eles precisam de aprender a viver com o segredo de Harry, o que não será fácil. Mas será que já não há mais nada por descobrir, de ambos os lados? "Não desistas de nós" "Eu nunca desistirei" Mas...