Julia

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– Você vai se atrasar para a escola – Vivian sussurrou ao pé de meu ouvido.

A senti de afastar e deslizar as pontas de seus dedos na palma de meu pé esquerdo causando um estímulo fino e desagradável que me obrigou a afastá-lo de uma vez. Um risinho baixo lhe escapou segundos antes de puxar o cobertor por completo, me fazendo finalmente abrir os olhos. Demorei um pouco para me localizar, aquela troca frequente de casas ainda me deixava desorientada pelas manhãs.

Assim que meus pais foram embora, qualquer tipo de regra parou de existir em minha vida. Não que eles fossem rígidos ou algo do tipo, mal faziam o mínimo que responsáveis deveriam fazer, é só que meu irmão era ainda mais permissivo. Ele tinha quatro filhos, todos com menos de cinco anos e eles, e a vida profissional, ocupavam todas as partes ainda lúcidas de seu cérebro. Mesmo assim Augusto não percebia sua incapacidade de adquirir mais uma responsabilidade na vida, achava que podia abraçar o mundo com as pernas, como falava meu pai. Ele e Letícia, me tratavam como se eu soubesse muito bem o que estava fazendo, ambos sempre me diziam que se aos dezesseis anos a pessoa não tivesse noção dos perigos do mundo, nunca chegaria a ter. Aposto que não pensarão mais assim quando for a vez de seu filhos.

Nosso apartamento ficou vazio, meu pai queria colocá-lo para alugar, mas minha mãe o convenceu do contrário, pois onde ficariam quando viessem para a cidade? "Na bagunça da casa do Augusto ou em um hotel mequetrefe?" Também criam que se arrumassem inquilinos, eles destruiriam a casa. Mal sabiam que eu também não teria muito cuidado com o imóvel. Boa parte do tempo estava por lá e a parte que sobrava passava na casa de Vivian. Só voltava para onde estava supostamente morando quando precisava de roupa limpa. Meu irmão me ligava vez ou outra, quando começava a se preocupar por não ter me visto por muito tempo, mas só precisava dizer que estava viva para acalmá-lo.

– Eu vou entrar no segundo horário – resmunguei e cobri o rosto com o travesseiro.

– Não, não, não – puxou o travesseiro também –, pode ir levantando e vai tomar café da manhã para depois se arrumar.

Tinha a visão embassada, mas ainda fui capaz de distinguir sua silhueta saindo do quarto. Rolei na cama e tateei a mesinha de cabeceira até achar meu maço de cigarros. Me sentei na beirada da cama, olhando para a parede por um tempo, tentando voltar a alma para meu corpo, coloquei o último fumo que tinha nos lábios, o acendi e traguei demoradamente. Me arrastei pela casa até chegar a cozinha. Eu estava apenas com o short do pijama e esfregava com força os olhos para tentar desembaçar as lentes de contato que nunca tirava. 

Encontrei Vivian enfiada na geladeira à procura de algo e só aí percebi que também não estava pronta.

– Pelo visto você também vai se atrasar para hoje – me joguei numa cadeira à espera que ela trouxesse a comida. – Decidiu também se dar uma folga?

– Não – respondeu colocando o pote de geléia na mesa, assim que livrou a mão a usou para puxar o cigarro de minha boca e lhe deu um rápido trago. – Meus pacientes da manhã desmarcaram.

– Eei! – protestei ao assistí-la apagá-lo na pedra de mármore da pia e atirá-lo na lixeira. – Esse era o último.

– Você sabe muito bem que não pode fumar dentro de casa.

– Mas essa é a minha casa.

– Não importa, bebê.

– Você sabe que odeio quando me chama assim.

– Princesa.

– Muito pior, odeio monarquia.

– Vai ser princesinha então.

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– Assim você vai me fazer vomitar.

– Pode vomitar – colocou algumas fatias de pão integral à minha frente – depois. Agora come. E, por favor, vê se penteia o cabelo antes de sair... Ah e tenta não passar tanto carvão nos olhos.

– Acho que você tá esquecendo que não é minha mãe.

– Eu sei que não sou, ainda assim sou a pessoa mais responsável da casa, você deveria me ouvir princesinha – beijou o topo da minha cabeça.

Comemos em silêncio, como na maioria das manhãs que acordávamos juntas. Ambas estávamos checando os SMSs no celular. Meus amigos já enchiam minha caixa de entrada, é impressionante como adolescente consegue passar cinco horas seguidas juntos, de segunda a sexta, e ainda ter tanto assunto às seis horas da manhã do dia seguinte.

Quando a mulher começou a levar a louça para a pia, vi ali uma oportunidade e a segui silenciosamente. Parei atrás dela, enfiei minha cabeça em sua nuca e puxei a respiração com força para sentir o cheiro de seu cabelo.

– Olivia – proferiu rispidamente – vai para a escola, não quero namorada burra.

– Mas eu já sou bem inteligente.

– O-li-vi-a!

– Para de ser chata – passei minhas mãos por sua cintura. – Deixa eu ficar aqui só mais um pouquinho – pressionei meu corpo em suas costas – que aí você pode me comer um pouquinho também – comecei a colocar minha mão por dentro de sua blusa. – Ouvi dizer que sexo pela manhã é ótimo para pele.

Cheguei no segundo horário. Ela me fez sair de casa na hora certa, nada que eu disse foi capaz de convencê-la o contrário, mas enrolei o máximo que consegui, fazendo questão de desviar o caminho para passar na padaria que me vendiam cigarro sem precisar da identidade. Tinha a música mais emo possível e no volume mais alto nos fones de ouvido, descia as escadas cantarolando enquanto observava o mar de pessoas que subiam à superfície vindo da outra plataforma. Morava a três estações de distância da escola e ainda pegava o contra-fluxo, mas, graças à enorme ineficiência do transporte público de Brasília, tudo que precisava era perder um trem para chegar meia hora atrasada.

A pracinha estava lotada de alunos desocupados. Encontrei João e Rebecca no lugar de sempre, sentados no meio fio de um canto obscuro em meio a alguns arbustos. Ambos tinham melhores motivos para terem chegado atrasados, moravam há um ônibus entupido e um insuportável engarrafamento de distância, daí quando estavam sem saco saíam tarde de propósito para, pelo menos, conseguirem vir sentados. Já eu, só não gostava de educação física mesmo.

João era aquele amigo super chapado que quase todo mundo tem. Era basicamente impossível encontrá-lo completamente sóbrio e quando esse milagre acontecia ele era rápido em reverter a situação:

– A tia já saiu? – me deu um cutucão e esticou o pescoço à procura da porteira.

– Acho que sim – só precisei fechar a boca para que ele acendesse um beck e eu aproveitasse o fogo no meu cigarro.

Era exatamente por isso que minha mãe tinha pavor de me mandar para escola pública. As famosas más companhias, que me apresentariam as drogas, o sexo e o rock'n roll. Se soubesse o tanto de cocaína que eu cheirava com as minhas amigas no banheiro do colégio católico que ela pagava uma fortuna...

Eu gostava de, tipo, umas três pessoas da minha escola anterior. A galera era muito otária ou muito certinha, às vezes os dois. Mas não tinha sido esse o motivo para eu querer sair. Também não teve nada a ver com qualquer dificuldade de aprendizado. Era boa na escola, odiava fazer dever de casa e coisas do tipo, mas ia muito bem nas provas. Só que quando começaram com aquela palhaçada de prova ocupando todos os meus sábados e aulas desnecessárias no horário contrário, precisei dar um jeito de cair fora. Daí comecei a cagar para minhas notas. E, meu deus, quer algo muito pior do que a filha de Vanessa Marques Bittencourt em uma escola pública era que essa mesma filhinha fosse uma repetente.

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⏰ Last updated: Feb 18, 2021 ⏰

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OliviaWhere stories live. Discover now