Não sei por quanto fiquei chorando, ajoelhada entre a cama do quarto real e os cacos de vidro. Os passarinhos pararam de cantar lá fora, como se em sinal de solidariedade e o céu não estava mais tão claro, já era tarde. As criadas, que provavelmente ouviram a gritaria, se afastaram do corredor, pois nem seus passos eram audíveis.
Minha mente viajou, me levando pelas mais felizes lembranças. Quando mamãe descobriu a gravidez de Mery; quando ela nasceu e abriu os pequenos olhinhos; quando falou meu nome pela primeira vez; quando deu seus pequenos passos cambaleantes; quando conheci Travis na floresta, tão jovem e tão bonito; quando tivemos nosso - e meu - primeiro beijo; quando ele disse que me amava pela primeira vez; quando passávamos as tardes juntos e então ele chegou. O rei. Com sua justiça horrível e injusta.
A porta do quarto se abriu e eu me encolhi, ainda de costas para ela, abraçando os joelhos.
-- Vá embora e não faça perguntas.
-- Eu não fui embora antes e não vou embora agora. - o desconhecido falou com a voz tão familiar, que tantas vezes eu ouvi sussurrada no meu ouvido - Maldição, Marie! Olhe para mim.
Respirei fundo e tentei parar de chorar, mas não consegui. O peso de todos aqueles anos fazendo maldades e não me importando, fingindo que não me importava, estava ali, preso em mim com as palavras repetidas de Morgana sobre como fazer feitiços, sobre como eu deveria ser perfeita, sobre como mamãe estaria orgulhosa. Mas ela não estaria. Como fui tão pequena? Tia Morgana era uma bruxa má e só pensava em vingança, mamãe nunca seria igual ela.
Me virei pra ele lentamente, ainda no chão, em meio aos cacos de vidro do espelho, lágrimas silenciosas escorrendo por meu rosto. Era o lugar ideal para mim, no chão era como eu me sentia, e os pequenos pedacinhos que refletiam o teto representavam os pedaços do meu coração pintado de negro por mim e pelo rei.
-- O que você quer, Travis? - seu rosto estava sujo de suor e ele me olhava como se me visse de verdade pela primeira vez em anos. Qualquer feitiço que ele tinha, havia se perdido.
Com cuidado ele veio até mim, me pegou no colo - o que me deixou surpresa - e delicadamente me colocou na cama. Depois ele deu a volta, sentou ao meu lado e começou a passar a mão nos meus cabelos. Eu queria gritar, queria dizer que ele era um mentiroso, que não me amava, mas desisti. Desisti de tudo no momento que quebrei o espelho. Ficaria para sempre naquele quarto, perdida em lembranças passadas e ilusões de um futuro do qual eu não poderia ter. Não tinha nada a perder mais, não me importava em ficar ali, esquecida e sozinha.
Ele se deitou ao meu lado e virou meu rosto para encarar o seu. Depois delicadamente pousou a mão na minha cintura e apertou levemente, como se dissesse: "estou aqui".
-- Você se lembra, de quando nos conhecemos? - ele falou tão baixo que só eu conseguia escutar.
-- Sim.
-- Quando bati meus olhos em você, no meio daquela floresta brincando com as flores, meu coração saltou. Era tão linda, é tão linda. Nós éramos jovens Marie, muito jovens, mas meu coração dizia que você era especial e você é. É a coisa mais especial que me aconteceu depois que meus pais me abandonaram.
-- Travis...
-- Shhhh! - ele levou a mão da minha cintura até minha boca e colocou um dedo ali, em sinal de silêncio. Depois desenhou com os dedos o contorno do meu maxilar. Seu toque era tão antigo e mesmo assim ainda deixava a pele quente, por onde tocava - Apenas me escute, certo? Eu tinha perdido a fé nas pessoas e jurado nunca mais amar ninguém, mas então você apareceu. Virou minha vida de cabeça pra baixo com sua curiosidade e delicadeza, toda preocupada querendo me ajudar. Então me apaixonei por você e quando nos beijamos pela primeira vez foi como se o mundo fosse meu e tudo seria possível se você estivesse do meu lado. - as palavras dele fizeram mais lágrimas silenciosas caírem.
-- Você está mentindo.
-- Como poderia estar mentindo? Não vê a verdade nos meus olhos? Esqueça sua tia e Branca de Neve. Esqueça que é a rainha, de que estamos em um Castelo e olhe dentro de mim, como eu consigo olhar dentro de você e ver tudo o que está sentindo. Céus, você está tão triste, tão sozinha. Eu estou aqui Marie, eu prometi nunca te abandonar e cuidar de você e estou fazendo isso. Olhe para mim, por favor, meu amor. - e então eu encarei aqueles olhos pelo qual havia passado a maior parte da minha vida apaixonada e eles eram sinceros. Tão sinceros que não pude entender. O espelho nunca mentia, como poderia ser verdade o que ele dissera?
Então, a imagem de Morgana surgindo no espelho sem eu a ter chamado apareceu em minha mente. Ela sabia de tudo antes mesmo que eu falasse, tinha observado o que aconteceu com Branca de Neve... ela estava ligada ao espelho. A magia dela era ligada a ele de forma com que fosse induzida por ela. Morgana mentiu. O espelho mentiu.
-- Você compreende agora, não? - ele me puxou para mais perto e me envolveu em seus braços fortes - E eu sei que nada mudou. Meu amor por você não mudou, não importa quantos feitiços sua tia maluca fez você colocar em mim. Eu sei que nada mudou porque quando faço isso... - ele abaixou o rosto e me beijou. O beijo de sempre, o beijo que ele me deu quando tinha 17 anos e eu 16 - ainda sinto que posso fazer qualquer coisa se estivermos juntos.
-- Apenas o amor verdadeiro pode desfazer uma maldição. - sussurrei para mim mesma.
-- O que disse?
-- Travis, eu sinto tanto. Céus o que eu fiz? Por que não fiquei com você? Me desculpe, por favor, me desculpe. Eu fui tão tola achando que Morgana me ajudaria... nunca vou me perdoar...
-- Marie, ei, calma. Você está de volta! Graças aos céus, você está de volta. - ele me abraçou - Não se preocupe meu amor, agora você pode concertar tudo!
-- Branca de Neve...
-- Sim, eu sei. Não a matei, ela fugiu.
-- Não é isso... Branca de Neve... ela corre perigo, Morgana vai amaldiçoa-la. Você precisa ir atrás dela... precisa protegê-la.
-- E o que você vai fazer?
-- Eu te amo, como é bom estar de volta! - lhe dei um beijo rápido e me levantei. Ele podia ver dentro de mim e eu dentro dele - Preciso de um arco. Tenho algo para conversar com Morgana.
-- Bem-vinda de volta, meu amor.
.O
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A Maçã e o Espelho
Short StoryTodos culpam a Rainha pelo o que aconteceu à Branca de Neve, a doce e amável princesa, e ainda intitulam ela como Má. Ninguém quis saber o motivo que levou a Rainha à fazer o que fez e acharam muito mais fácil culpá-la. Talvez porque ela tomou o lug...