Esperei por quase três dias e finalmente parou de chover. Minhas coisas já estavam prontas para minha jornada. É engraçado falar "jornada" quando nem sei ao certo se é isso mesmo que irei fazer, está mais para uma caçada após o apocalipse.
Tudo o que eu iria precisar nos próximos dias estava dentro da mochila velha que encontrei por acaso debaixo da minha cama. Tentei lembrar de todas as coisas que Nate levou naquele dia, roupas mais quentes para quando ficasse mais frio, comida enlatada junto com uma lista dizendo o quanto poderia comer durante o dia. Havia outras listas, porém Nate não as dividiu comigo.
Então eu fiz minha própria lista.
ESCOVA DE DENTE (sim, escova de dente)
ROUPAS QUENTES
GARRAFA DE ÁGUA
COMIDA ENLATADA
TESOURA
CORDA
ISQUEIRO
FACAS
CAIXA DE MUNIÇÃO
ÓCULOS DE SOL
LANTERNA
SACO DE DORMIR
NECESSAIRE
REMÉDIOS
CADERNO
FOTOS
Depois de mais uma lida para ver se não estava esquecendo nada, fecho o zíper da mochila. Levei uma hora para organizar tudo. Levei mais meia hora para lembrar como mexia na espingarda velha de meu pai e onde estava a caixinha com o restante da munição.
Estava tudo dentro da mochila quando fui para o banheiro pela última vez. Pela última vez eu iria em um banheiro descente. Pela última vez eu iria poder tomar um banho descente. Pela última vez eu iria viver como uma pessoa descente porque, a partir do momento em que eu saísse pela porta da cozinha, eu não iria voltar até que achasse meu irmão, ou não iria voltar por estar morta.
Milagrosamente,por todos esses anos, ainda tinha água encanada que, segundo Nate, podíamos usar para tomar banho e beber desde que fervêssemos antes. Não sei se funcionava muito bem, Nate dizia que era seguro, como eu acreditava em tudo que ele dizia, não vi problema em continuar mesmo depois de sua partida. Também se não funcionou, só descobriria quando estivesse morrendo, o que até agora não aconteceu.
Tomei meu último banho descente. Cortar o cabelo foi uma sensação libertadora,parecia que minha cabeça ficou mais leve. Seco meu cabelo que agora se encontra na altura do queixo, depois o corpo. Visto as roupas que escolhi para passar os dias perambulando por ruas que não conheço mais. Após está vestida com calça, uma blusa de mangas compridas preta e outra de manga mais curta por cima, duas meias, e de ter colocado as botas que mamãe usava quando acampávamos, sai do banheiro.
Não me importei com meu cabelo molhado, ele já não me incomodava mais.Nem me dei o trabalho de arrumar o que havia deixado bagunçado, não voltaria tão cedo para cá mesmo. Talvez nunca mais voltasse.
Já na sala, olhei em volta pela a última vez. O sofá bege que mamãe brigou tanto com papai para comprar já estava todo caidinho, o bege bonito de antes se tornou um cinza obscuro. A TV de frente para o sofá nunca pareceu tão solitária quanto agora, assim como a mesinha de centro. Nate insistira em deixar os quadros de alguns traços que nunca entendi muito bem na parede, ele dizia que era como se ainda vivêssemos no passado o que nunca poderia ser verdade, ele sabia muito bem disso.
Não havia mais nada ali para que eu pudesse lembrar ainda. Na verdade, há muitos anos não havia mais nada para ser lembrado, apenas que eu ainda estava viva e que algum dia iria morrer. Anos atrás a maior preocupação dos humanos era morrer com uma vida confortável, com dinheiro no bolso e uma boa casa, já hoje se você tivesse um pouco de água limpa para sobreviver já era mais do que o suficiente por alguns dias.
Respirando fundo,peguei a mochila em cima do sofá, estava bastante pesada mas eu teria que me acostumar com o peso. Fui até a cozinha, havia deixado ali um dos casacos que adorava de minha mãe. Nas poucas vezes que ela se permitia ser apenas uma mulher comum, e não uma professora,uma mãe, ela saia para correr na rua com um suéter de capuz preto.Vesti ele e me surpreendi por caber em mim. Foi então que olhei para a porta da cozinha.
Ali parado, vi a imagem de Nate como na última vez que o vi: sobretudo verde, mochila nas costas e os cabelos brilhando. Quis chorar ali mesmo, mas ele então balançou a cabeça, como se dissesse para mim não fazer o que estava prestes a fazer. Ele não sorria para mim,queria que ele estivesse sorrindo como sempre esteve. Queria que ele dissesse alguma coisa, que voltou para casa.
Mas ele não disse nada, só ficou ali, parado.
— Você mentiu — me ouvi dizer, minha voz estava rouca. — Você é um mentiroso Nathaniel, você não voltou.
Fechei meus olhos tentando impedir as lágrimas quentes caírem sobre meu rosto, porém não foi o bastante. Elas continuaram aparecendo.
—Você nunca voltou — murmurei.
Abri meus olhos, ele não estava mais lá.
— Você nunca voltou — repeti, agora com meu corpo todo tremendo de raiva.
Raiva por ter sido tão burra e ter deixado Nate ir sozinho em um mundo em que ninguém conhecia mais, em um mundo onde não se sabia quantos seres humanos ainda restavam e se restavam, um mundo onde não poderia ser considerado mais um lar. Nate criou um sonho, e nesse sonho ele nunca esteve tão errado.
Então, limpando-as lágrimas do rosto, peguei as chaves dos cadeados onde havia deixado há dois anos atrás, fui até a porta e abri cada um sem me importar com o barulho. Os joguei no chão, me agachei e tirei a tábua de baixo, depois tirei a do meio e por último a de cima. Retirei o bloco de madeira que era pesada demais para mim aos 13 anos e a deixei ao lado da geladeira. Voltei a passos largos até a mesa, peguei minha mochila, coloquei nas costas, voltei outra vez para aporta e abri sem medo, se tivesse algum humanoide por ali, não me importaria se ele me atacasse.
Entretanto, não havia nada ali, apenas a luz do sol que quase me cegou. Meus olhos ardem tanto que lacrimejam. Após minutos esperando meus olhos voltarem ao normal, fechei a porta lentamente.
Fiquei parada ali olhando para ela por alguns segundos. Como era para Nate quando ele olhava para essa porta toda vez que voltava depois de andar no meio do perigo? Como seria depois de ter visto um humanoide talvez? Será que ele sentia alivio por mais uma vez ter voltado para casa? Alegria? Acho que nunca saberei a resposta.
Antes de me virar para ir em busca do meu desaparecido irmão, fiz aquilo que sempre esperei ouvir. Fiz aquilo que sempre quis fazer.
As batidas secretas de Nate.
Toc, toc
Cinco segundos
Toc, toc, toc
Uma pausa
Toc, toc
Depois, apenas me virei sem olhar para trás.
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HUMANOIDES
Science FictionEm um futuro destruído, a humanidade tenta sobreviver as mudanças que o planeta sofreu com a queda de um meteoro radioativo na Terra destruindo grande parte da vida e mudando outra parte dela. É nesse cenário que a jovem Katlyn tenta sobreviver soz...