Capítulo 6 - Ação & Reação

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Os investigadores foram vencidos pelo cansaço, e a preguiça de lidar com os manifestos inúteis do chefe. Logo, prometeram a si mesmos que iriam conversar com Walters na manhã seguinte, assim que falassem com o pessoal da perícia, para descobrir se havia alguma nova informação quanto ao corpo de Marjorie. Não era irresponsabilidade prorrogar a temida discussão por mais algumas horas, afinal, tinham certeza de que, mesmo se Tom decidisse fugir, devido à popularidade de sua família, não seria muito complicado localizá-lo.

Jack acordara com Oz passando o jornal do dia por debaixo da porta, lendo em voz alta a manchete, enquanto celebrava a ausência do modus-operandi do criminoso na matéria; ou seja, sem revelar a parte em que os olhos foram retirados.

O homem, em seguida, se espreguiçara na cama, forçando o seu corpo a levantar e encarar o dia insuportável que se instalara. A simples menção do rosto de Randall em seus pensamentos, lhe dava a vontade absurda de desistir daquela manhã, para jogar seu rosto no travesseiro e não ver nada além do escuro. Não era sua culpa, ora. O perfume de farmácia forte que poluía a sala inteira, a pele oleosa, o corpo suado... tudo naquele delegado o tornava desagradável, cada detalhe de sua aparência revelava a personalidade nojenta que ele abrigava por dentro.

Ignorou a preguiça espiritual, correndo para tomar uma ducha fria que o despertasse por inteiro, acordando todos os seus neurônios cansados de tanto raciocinar na noite anterior. Repassara as horas insanas em que conversara com os primeiros circenses, as reações de Charlize, das gêmeas, de Cassandra. Assim que as gotas ferozes de seu chuveiro tocaram em seu couro cabeludo levemente ferido, Jack lembrara-se dela. Do cinza fatal investigando-o da cabeça aos pés, do corpo quente enroscado ao seu durante aqueles poucos e intensos minutos. E um sorriso moldou-se em seus lábios secos, enquanto a água congelante começava a fazer efeito. Então, seu humor, antes em formato de nuvem negra, transformara-se em chuva, eliminando todo o mal estar matinal junto à água corrente.

- Bom dia, flor do dia - cumprimentou a Oz, sentando-se à frente dele na mesinha redonda da sala de jantar.

- Bom dia - respondeu o parceiro, secamente. - Espero que as horas que você perdeu no banho tenham servido para alguma coisa.

- Ah, elas serviram... - o detetive retrucou, sorrindo esperto. - Bastante.

-Oh! Mas que diabos, Jack - Oz disse, incrédulo, largando o garfo de prata em cima dos ovos mexidos. - Eu tô comendo!

- Não para isso - Jack franziu o cenho, com uma risada contida por culpa do exagero do amigo. - Tive uma ideia para o caso.

- Mesmo assim, você colocou essa imagem horrorosa na minha cabeça.

- Você sabe que é uma imagem bem melhor do que a que você vê todo dia quando se olha no espelho - Jack rebateu, começando a mastigar parte de suas panquecas ligeiramente frias, que Oz preparara para ele.

- Tenho minhas dúvidas... com o tanto que você fuma, deve estar tudo preto aí debaixo desse casaco - riu, anasalado, bebendo um gole de seu chá de framboesa. - Enfim, qual foi sua ideia?

- Bom, se as suspeitas da Charlize estiverem certas, o Lance está morto, quase certo - engolira parte do café puro, sentindo a amargura despertá-lo mais um pouco. - Então, nós precisamos do corpo. E eu tenho um palpite. Ele pode estar errado, mas é um palpite.

- Qual?

- O Guadolomon fica a alguns metros de distância do rio Pearl, achei que podíamos começar por lá. Já que vamos ver o Randall hoje... nada custa pedir que ele mande alguns homens para isso - terminou com a xícara azul, enquanto seus pensamentos começavam a projetar o cadáver arroxeado vagando pela correnteza escura, com as roupas encharcadas e os dedos enrugados. Respirou fundo, para não ver o rosto dele desenhado em sua panqueca, e voltou a saboreá-la.

Mohlo by se ti líbit

          

- É - Oz suspirou, estalando os dedos, ato que sempre fazia quando via-se nervoso. - Acho um bom começo. O problema é aquele né...

- Convencer o Randall - o interrompeu, já sabendo o fim do discurso. - Não se preocupe com isso. Eu tenho algumas cartas na manga.

🎪

Eram nove horas e quarenta e sete minutos da manhã de terça feira. Os detetives caminhavam pelos corredores com aroma de desinfetante, tentando esconder a curiosidade sobre a história de cada cadáver que encontravam no necrotério. Uns de aparência impecável, outros tão destruídos pelo ódio quanto a bailarina. Mas todos igualmente interessantes.

O perito Luke Brown os guiara até a sala com as paredes compostas por azulejos brancos, acompanhados por um cheiro perturbador que vagava entre os lençóis amassados. As curvas de corpo humano podiam ser facilmente reconhecidas sob os tecidos, com braços musculosos se sobressaindo em alguns, barrigas elevadas em outros...

E então tinha Marjorie.

Ao puxar o lençol delicado que cobria seu rosto, tão bonito dois dias atrás, o choque foi ainda maior do que antes. A pele estava mais pálida, com veias esverdeadas começando a tomar forma ao redor dos orifícios pavorosos que costumavam abrigar seus olhos. As ondas douradas estavam enrijecidas com o sangue seco, e uma toalha cobria o restante de seu corpo esbelto.

Jack se perguntou por onde andaria o tule rosado em que a mulher se encontrava, quando a viram no carrossel. Rapidamente, a imagem da peça de roupa jogada em sacos de lixo começou a impregnar sua mente, e a comparação inusitada daquela cena, ao destino fatídico da bailarina teve vez.

Marjorie, em breve, nada mais seria do que um cadáver esquecido sob a terra do cemitério St. Louis. Devorada por insetos, talvez? Devido à sua experiência, o detetive sabia que, menos de um mês após o enterro, caso exumassem seus restos, não haveria uma única recordação da beleza que ela um dia tivera.

Apenas ossos fedorentos em um túmulo de madeira.

- Não encontramos os olhos dela, detetive - o perito comentou, com as mãos repousadas à frente do jaleco branco impecável. O homem piscava com uma frequência absurda, como se aparentasse ter um tique de nervoso, o que fazia Jack evitar encará-lo diretamente. O investigador tinha a aflição de piscar no mesmo ritmo para acompanhá-lo e, embora fosse inconsciente, sempre acabava fazendo isso. - Vasculhamos toda a região. O assassino os carregou.

- O senhor fala assassino com tanta exatidão que parece ter certeza de que se trata de um homem... tem algum motivo de especial para isso? - perguntou Oz, com as anotações sendo feitas em seu caderninho de couro vermelho.

- Na verdade, sim - o profissional ajeitou seus óculos com o dedo indicador, virando-se para o cadáver. - Se os senhores repararem nas costas dela, verão que os arranhões foram feitos a faca e, dada à brutalidade do crime, duvido muito que uma mulher consiga...

- Duvidar de um sexo por conta da arma utilizada é um pouco negligente, senhor Brown - Jack o interrompeu, enfiando as mãos nos bolsos, para conter a necessidade de tocar nos arranhões que se amontoavam pela pele de Marjorie; visíveis depois que o perito colocou o corpo dela de lado, com a cautela explícita nas luvas brancas que a tocavam como se fosse brasa. - Há mulheres com psicopatia em todo lugar. Nosso último caso, inclusive, envolveu a morte de uma filha por sua própria mãe; não duvide da habilidade humana de cometer atos bárbaros. A índole assassina não tem sexo, apenas a maldade absoluta expressa em seus atos.

- Compreendo... - o perito murmurou, pensativo. - Mas maldade é pouco para definir este crime, senhor Johnson. A raiva e a violência que o assassino, seja de qual sexo ele for, é quase desumana. Como se tivesse liberado a frustração de uma vida inteira no corpo desta jovem moça.

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