2. Entrelinhas

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Maria Clara

Dez Anos Atrás


"Vamos sair desta, queridinha" era uma promessa frequente de Carlos, usando uma voz doce e repugnante, com o hálito de álcool soprando em meu rosto irritado. "Não te preocupes, o Lula já estás a assumir e irei conseguir um trabalho em breve!" Mas o seu discurso que havia vencido há quase um ano não me comprava mais - minha irritação estava começando a aflorar desde o dia em que Carlos se envolvera com bebidas e nicotina, e hoje, cinco anos depois, estava prestes a dar fruto.

Carlos era português. Uma aventura que vivenciei quando estava fazendo um doutorado em Portugal, especializando-me em Edgar Alan Poe. Ninguém da minha família sabia que eu andava por ares tão ousados, me formando sobre um dos gênios do terror policial e namorando nas noites quentes de Lisboa. Talvez, se soubessem, minha vergonha teria me parado logo ali e através da repreensão, eu estaria mudando meu destino e indo para a Inglaterra, trabalhando até conseguir algum curso sobre Bronte, Dickens, Wilde ou qualquer um dos clássicos que me chamassem atenção na área de romance de época. E, talvez, não teria conhecido tal traste.

Foram necessárias apenas algumas noites para que eu caísse de amores pelo sujeito que se apresentava como Joaquín na época - para, no final, dizer seu nome verdadeiro, que eu só parei de duvidar no dia do nosso casamento, e afirmar que Joaquín era uma piadinha interna entre os portugueses. Quase gritei para que enfiasse o bacalhau em lugares indecentes, mas mantive a pose. "Há, há, há! Boa, Joa... Carlos. Boa!". Babaca. Acreditava piamente que estava fazendo a melhor coisa da minha vida. Minha carreira esteve sempre acima de todas as minhas paixões, e agora, combinada com ele, o inteligente, bonito, atencioso, engraçado professor da Faculdade de Lisboa, estava tudo perfeito. E aí que fomos para o Brasil - eu para morar, de volta às minhas raízes. Ele pela primeira vez, abandonando uma vida para viver a minha.

É irônico o quão certa eu estava quando pensei exatamente isso, mas com outras intenções. Jamais acreditaria que "viver a minha vida" seria algo além de viver comigo, no meu mundo, no meu país. Como é que Wilde dizia mesmo? "A arte é o espelho do artista". Deveria ter me lembrado disto, também. Como não achei estranho alguém que dava palestras de Carisma e aulas de Psicologia, falando sobre como funciona a mente humana e como desvendá-la? Em outras palavras, estava ensinando a charlatões darem golpes.

Carlos foi perfeito nos primeiros cinco anos, até entrar em uma crise política e despejar tudo que tinha na bebida. A crise foi praticamente uma desculpa, apesar de sua obsessão com o partido comunista. Fomos à pobreza rápido, com duas crianças para criar, faculdade para pagar, o aluguel aumentando e meu belo marido sem disposição alguma para tentar ser decente. No fim dos tempos, Carlos acabou se tornando uma sanguessuga de dinheiro, de amor, de almas.

Consegui engravidar duas vezes, de duas crianças com uma genética bem distribuída. Romeu, meu primogênito, parecia um anjo, o Davi de Michelangelo. O menino tinha cabelos grossos e brilhantes, com cachos e olhos verdes igualmente grandes. Sua pele era bege e sua boca fazia biquinhos naturais, o que o deixava ainda mais lindo. O fato que ele parecia mais com a mãe do que com o pai era uma vitória pessoal.

Mas não podia faltar elogios da minha caçula. Sou obsessiva com nomes combinando e, se pudesse, colocaria todos os nomes das crianças com as mesmas letras ou rimas, que nem duplas sertanejas. Talvez minha infância no interior de Goiás tenha influenciado alguma coisa, ou talvez fosse a cultura brasileira, mesmo. Não sei. Só sei que estava decidida a colocar o nome da criança de Roberta. Roberta e Romeu me soava bem. E foi o que fiz.

Maria Clara acabava sendo reduzido para Clarinha ou Clara. Clara e Carlos. Roberta e Romeu. Roberta também parecia uma estátua, no sentido literal; sua pele era tão clara que realmente dava para ver suas veias em quase todo lugar, seu rosto era delicado e todas as extremidades bem definidas. Nariz pontudo, queixo pontudo, orelhas pontudas. Sua beleza era interessante e instigante. O tipo de beleza que você tem que prestar atenção para entender.

Sempre fora extremamente quietinha, minha doce Roberta. Quando estávamos só nós duas em casa, parecia que nem criança tinha. Isso era para compensar o temperamento de Romeu, com certeza. Romeu era elétrico, uma criança com demasiada energia e criatividade, que estava sempre se machucando por aí e berrando suas aventuras aos quatro ventos.

Tentava a todo custo brincar animadamente com sua irmã quase quatro anos mais nova, que não alcançava seu ritmo nunca e o deixava infinitamente frustrado. Com Romeu era assim; sempre cheio de adjetivos de intensidade para demonstrar o quão intenso ele realmente era.

Ah, ele estava, inclusive, tentando fazê-la brincar de piratas naquela noite. Eu podia ouvir seus "arrr!" enquanto chorava em silêncio, tentando não fazer barulho e me concentrar nos barulhos dele. Em certo momento, ele começara a brigar com a Roberta sobre como ela tinha que encontrar o tesouro que ele havia escondido pelo quarto para aguçar sua criatividade, mas ela continuava sem querer olhar o mapa improvisado que ele tinha desenhado.

Foi quando eu desmaiei com um Carlos bêbado e fedorento em cima de mim, sangrando em alguns lugares doídos. O que mais me preocupava e me fazia tentar ficar acordada era que o sangue em minha boca era muito e eu temia engasgar e morrer enquanto dormia, deixando ambos de meus piratas sem uma capitã.

Ai ajuns la finalul capitolelor publicate.

⏰ Ultima actualizare: Aug 26, 2016 ⏰

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