A carta

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Kurt sentiu o corpo gelar. Voltou os olhos para Adara, que ficava pálida. Virou-se para Christopher. – O que fez com ela? – rosnou.

- Hadassa está em segurança – o tenente se aproximou ainda mais. – Eu posso contar tudo a vocês, mas não aqui. – baixou o tom.

- Está mentindo – Adara sussurrou, olhando para eles. -, você nunca a viu!

- Qual outra pessoa além dela saberia que você, Adara, foi apaixonada por seu professor de geografia, Oton, quando tinha doze anos? – Christopher soltou, lembrando-se das coisas que Hadassa lhe contara para que tentasse convencê-los.

A garota cobriu a boca, sentindo o peso dos olhares de todos sobre ela. O oficial percebeu que estava funcionando, então continuou. – Ou que Kurt só aprendeu á abotoar suas camisas sozinho quando tinha dezesseis anos?

Gary olhou para os judeus que tinham seus segredos revelados, mas nenhum deles parecia se importar com aquilo. A única pessoa que sabia daquelas coisas a não ser eles mesmos era Hadassa.

- Como sabe disso? – Kurt sussurrou.

- Hadassa me contou. – ele falava calmamente, e agora apenas dois metros o separava dos outros.

Rose percebeu que todos estavam sem palavras. Tentou tomar a frente. – Você a conhece, mas o que nos garante que ela esteja em segurança? Ela pode estar sendo torturada!

- Eu sei que não faz sentido algum – Christopher lentamente colocava a mão bolso, á qual voltou com uma carta. –, então deixarei que Hadassa explique tudo para vocês.

O tenente estendeu a folha de papel várias vezes dobrada para a moça, que após deixar o braço dele no ar por muitos segundos, a pegou de forma bastante hesitante, enquanto suas mãos tremiam. Christopher cruzou os braços sobre o peito, a espera de qualquer reação. Não lera a carta, embora estivesse bastante curioso para saber cada detalhe do que Hadassa pensava dele agora.

Kurt ajudou-a á abrir o envelope de forma lenta, enquanto Rose e Gary formavam uma espécie de roda com eles, mas sem dar as costas ao oficial. Adara cobriu a boca, enquanto lágrimas de tristeza e talvez alegria transbordavam por seus olhos.

- É a letra dela... – a moça disse angustiada, já não conseguia segurar o choro.

- Tem certeza? – Gary tentava analisar o papel.

- Ninguém nesse mundo tem uma letra assim, eu tenho certeza absoluta! – Adara analisou todas as cinco páginas, verificando que realmente foram escritas por sua amiga.

- O que diz? – Kurt passou a mão pelos cabelos, imaginando o quanto aquela noite estava sendo estranha.

Adara respirou fundo, fazendo o seu máximo para segurar as suas lágrimas. Colocou o papel abaixo do rosto e começou á ler em voz alta.

Dachau, 13 de Junho de 1943.

Queridos amigos;

Sim sou eu, Hadassa. Antes de tudo, precisamos esclarecer alguns pontos;

1 – Ninguém está me submetendo á qualquer tortura, meu físico está ótimo.

2 – Vai demorar um pouco, mas com o tempo, vocês conseguirão confiar em Christopher. Talvez isso nunca aconteça, e eu de forma alguma poderei culpá-los.

3 – Estes últimos meses longe de vocês foram os mais agonizantes que eu já vivi, mas isso deve-se apenas a saudade.

4 - Aqui estão todas as explicações de que vocês precisam.

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No dia em que chegamos da Polônia naqueles grandes trens sem portas e totalmente lotados...

E durante vários minutos, as lágrimas de Adara tornavam-se mais e mais abundantes, enquanto ela recitava as palavras escritas á caneta numa voz vacilante. Christopher fumou dois cigarros durante aquele processo. Hadassa teve dedicação para escrever a carta, pois discorreu tudo o que aconteceu com ela durante aqueles meses, dando cada detalhe que esclareceria as coisas para seus amigos. Adara chegou á última folha, e o oficial ficou ainda mais atento ao ouvir aquela parte.

''... Sei que vocês estão se perguntando desde o início de minha carta o motivo pela qual eu aceitei a aparente ajuda de um nazista.

Nunca tive tanto medo quanto naquela noite. Imaginar que eu morreria numa floresta ou pelas mãos de qualquer soldado me impulsionou á ter a coragem de acreditar que, um homem como ele teria realmente voltado com o intuito de me ajudar. Felizmente, posso dizer que confiar num SS foi uma decisão que Deus tomou por mim.

Eu não tenho certeza do que está realmente acontecendo á vocês, mas sei que meus amigos estão vivos e minha irmã continua rindo, é tudo o que realmente importa.

A única coisa de que posso assegurá-los é de que Christopher está do meu lado. Ele ainda não sabe o motivo, mas garanto que não executará nenhum mal á qualquer um de vocês. Peço que confiem nas palavras dele, pois o mesmo prometeu que não faria qualquer coisa para prejudicar a minha família, e ele jamais quebraria uma promessa.

Espero que possamos nos ver logo; por favor, deem o abraço mais apertado do mundo em Leilla por mim.

*P.S – Adara me desculpe sobre Oton, contei por uma boa causa. Kurt, você ia acabar soltando a informação em algum momento*.

Que Deus cuide de vocês.

Com todo o amor e saudade,

Hadassa B. Rosenblatt''.

A moça baixou a carta, deixando a face desmanchar-se em um choro angustiado diante de todas as informações. Kurt voltou-se para o outro rapaz.

- Por que fez tudo isso? – disse, abraçando Adara pelos ombros. Seus olhos claros fixos no tenente sem qualquer medo e cheios de aversão.

Christopher soltou a fumaça do tabaco, lembrando-se de que ainda não formulara uma resposta para tal pergunta. Por um segundo, o abraço de Hadassa que ocorreu há algumas noites encheu sua cabeça. A forma como ela estava agradecida, como seus instintos confiaram nele á ponto de ficar tão vulnerável á qualquer ataque. Sem querer, percebeu que queria logo voltar para casa, pois estava com saudade; quase morto de saudade dela, como se não tivesse contato com a moça há meses. Apenas sabia que ela, de alguma forma, confiava nele.

- Hadassa despertou bondade em mim... – ele parou, notando os olhos sobre ele. E então, lembrou-se da palavra de que se esquecera há anos. –, compaixão.

- Você e aquele bando de idiotas matam milhares! – Kurt elevava a voz, sem preocupar-se de estar na presença de um SS.– Você extinguiu incontáveis vidas!

- E salvei a dela – Christopher ainda falava de forma calma, embora sua voz tivesse soado firme. Pisou no que restava de seu cigarro, voltando-se para Gary. – Como você conseguiu autorização para levar apenas três judeus?

- Não vou passar essa informação a você. – retrucou.

- Você sabe que eu sou o responsável pelo sumiço de uma judia, que, aliás, mora no meu porão – Christopher levantou os ombros. – Eu não quero entregar você, e mesmo que eu o fizesse você tem muitas acusações contra mim para me levar para o buraco junto.

Gary suspirou, o tenente estava certo. – Eu conheço Kurt há muitos anos, o pai dele era um amigo de muito tempo. Descobri que os judeus do gueto seriam enviados para cá então negociei com Hadrian por eles.

- Quem é Hadrian? – o tenente franziu levemente o cenho.

- É apenas um apelido para um dos oficiais. – Gary disse de forma leviana.

Christopher deu de ombros. – E o que foi definido?

O homem contou-lhe as mesmas mentiras que contara á Kurt e Adara. Que Hadrian achava que eles trabalhavam apenas para a fábrica quando na verdade eles se passavam por alemães. O oficial apenas assentiu, esperando o choro de Adara passar.

- E então? – Rose perguntou após o longo silêncio.

- Apenas quero que vocês saibam que Hadassa está viva e bem, e que ao fim da guerra vocês poderão estar com ela novamente. – Christopher respondeu.

- É tudo muito convincente, a carta, a história, mas você é um nazista – Kurt falava com toda a seriedade, passando as mãos pelos braços de Adara. - Não podemos confiar em nada do que diz e muito menos acreditar que isso seja verdade. Pode tê-la obrigado a escrever essa carta!

- Jamais faria isso - Christopher suspirou. – Não culpo a vocês, eu reagiria da mesma forma no seu lugar.

- Nós... – Adara interveio, a voz embaralhada. – Nós só acreditaremos se á virmos.

Gary olhou de soslaio para a esposa. Voltou-se para o tenente. – É, se está falando a verdade, deixe que Hadassa nos visite.

Christopher os analisou, descrente do que ouviu. – A coisa não funciona assim. Hadassa não tem documentos falsos e é claramente uma judia. É por isso que ela não pode sair de meu porão quando não estou em casa, levantaria muitas suspeitas.

- Tudo bem, mas talvez você possa levá-la como fez naquela noite no campo, dentro do carro até a minha casa... - Rose soltou sem pensar.

Gary arregalou os olhos e encarou a esposa. Sorte que fora ensinado á nunca xingar uma mulher. Quando voltou-se para o tenente, ele pensava.

- Isso pode dar certo – murmurou, fitando o chão. – Desde que os homens que já a viram, principalmente o Kommandant estejam fora do caminho, é possível.

- Está falando sério? – Kurt perguntou como quem não queria nada.

- Sim, digo, é muito arriscado para todos vocês, para mim e para ela – levantou o rosto, imaginando o quanto a garota gostaria daquela ideia. – Em um mês, vai ocorrer uma conferência em Munique. Coincidentemente os oficias que a viram naquela noite precisarão viajar para lá – Christopher assentiu para si mesmo. – Pode dar certo.


Naquela noite, o oficial não dormiu. Estava ocupado demais contando á Hadassa cada um dos detalhes de sua conversa com os amigos dela. Depois de muitas juras de ''não agressão'', já longe daquela festa, ele e Gary combinaram que a garota iria á casa em 15 de Junho, depois das onze da noite para revê-los.

Christopher sentiu-se incomodado ao pensar que conversara com dois inimigos do Estado normalmente, e nenhum deles era Hadassa. Não sentiu qualquer aversão por eles, o que jamais aconteceu antes; e pensar que havia feito tudo aquilo para tentar sanar a enorme dívida que para sempre teria com ela. De qualquer forma, começou a acreditar que algum dos deuses era real, pois mesmo que jamais merecesse, viu aquele sorriso e contemplou o olhar agradecido da menina repousando sobre ele. Isso sim era uma prova de algo divino.

Ele descobria que apenas vale a pena viver se for em prol do outro. Arriscaria ainda mais a sua vida para promover a alegria de outras raças? Sim, começava a fazer sentido, pois o mesmo espírito que estava na garota e a fazia diferente de tudo o que já conheceu começava a se mover nele, transformando-o num homem distinto de tudo o que já fora e imaginou tornar-se. 

Uma promessa feita pelo ''acaso''.Onde histórias criam vida. Descubra agora