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Era quase meio dia e fazia um calor infernal no cativeiro na favela. Meu tempo estava acabando e eu precisava partir para a casa de campo abandonada que era da minha família há gerações. Lá era o lugar ideal para me refugiar, ninguém sabia da existência daquela casa e nada poderia dar errado. Clarice acordou atordoada depois de horas dopada. Mesmo amordaçada, ela estava linda. Ela mexia a cabeça devagar e olhava em volta e quando me viu mudou o semblante. Seus olhos se encheram de lágrimas e começou a chorar. Por um momento, pensei em levantar e ir acalmá-la como fiz diversas vezes no passado, porém fiquei quieto, pois era o melhor a se fazer, afinal ela já não era a mesma por quem um dia me apaixonei anos atrás, ainda na adolescência.

Clarice era uma das melhores alunas do colégio onde eu estudava, muito dedicada, estudava como uma louca para obter as notas mais altas. Era o orgulho da família e dos professores. Eu não ia muito com a cara dela, sempre desprezei CDFs, e ela também não gostava muito de mim. Estávamos no 3º ano do colegial quando fui transferido para a mesma turma que ela. Não nos falávamos, mas quando o período de provas e, principalmente, de entrega de resultados começaram, algo interessante aconteceu. A aluna número da turma foi desbancada por um da turma do fundão: eu.

- Eu não acredito que um ogro como o Peter tenha conseguido notas maiores que eu – resmungava ela para as amigas.

- Estuda mais na próxima vez, crânio! – eu gritava do fundo da sala para provocar.

Clarice não aceitava que uma pessoa que não estava nem aí para nada pudesse ter notas maiores que as suas. Ela era a querida dos professores e eu o odiado. E isso virou uma competição no colégio, brigávamos e discutíamos toda vez que eu zombava de sua média. Nossa guerra só acabou quando um cara de outra turma tentou bancar o engraçadinho pra cima dela. Eu a defendi, ela me agradeceu e depois disso nos tornamos amigos. A amizade que surgiu era forte e bonita e foi inevitável: nos apaixonamos. Começamos a namorar e nos tornamos o assunto de todo o colégio.

- Sabe, eu te achava uma mala sabia, Clarisse?

- E eu te achava um babaca – fazia uma pausa me olhando. – E ainda acho, sabia?

- Então estamos quites – eu dizia e ela ria feito boba até que eu a beijasse.

Apesar de sermos apenas dois adolescentes, nosso namoro não foi uma coisa de momento, foi muito mais que isso. Era um relacionamento sério, sério mesmo. Era amor como nunca se viu antes. Assim que terminamos o colegial, fomos para a Universidade. A princípio, eu nem imaginava fazer faculdade, não fazia ideia que área seguir. E quando ela me disse que queria seguir no ramo da administração, tomei para mim aquele sonho e passamos, os dois juntos, no vestibular. Eu em primeiro e ela em segundo lugar, claro.

- Certas coisas não mudam – eu disse pra ela que deixou o espírito competitivo de lado e comemorou nossa aprovação conjunta.

- Estou muito feliz por continuarmos juntos, Pete!

- Nunca vamos nos separar, meu amor.

- Te amo – ela disse antes de me abraçar e me beijar.

"Te amo... te amo... te amo", malditas palavras. Eu que a amava de verdade, jamais menti sobre meus sentimentos, já ela...

Tudo estava perfeito, nossas vidas estavam seguindo de acordo com o planejado. Terminamos o curso juntos e ingressamos no mercado com grande êxito. Assumi meu lugar no Grupo Fonseca Turismo S/A trabalhando junto à direção e não foi difícil crescer lá dentro. Quando assumi as finanças, finalmente senti o gosto do poder e ele era maravilhoso. Pedi Clarice em casamento no restaurante mais caro da cidade, ela adorava meus mimos caros e exagerados. Nosso noivado foi festejado na empresa, os preparativos para o casamento se tornaram o assunto favorito das secretárias. Foi uma fase feliz, porém tudo mudou quando Umberto Fernandes chegou ao grupo.

Ele foi contratado a peso de ouro depois de realizar três projetos bem sucedidos para a maior concorrente do nosso grupo. Sua missão era recuperar a liderança do Fonseca Turismo no mercado, pois enfrentávamos uma grave crise. Dentro das minhas possiblidades, tentei contornar a tal crise de todas as maneiras, mas estava cada vez mais difícil. Os cortes que propus não foram bem vistos pela imprensa e gerou a revolta dos sindicatos. A coisa toda virou uma enorme bola de neve e a pressão de todos estava me enlouquecendo. Tive uma briga feia com Clarice e ela terminou comigo. Tudo pesava sobre minhas costas e, quando eu achava que não poderia piorar, eu os vi aos beijos. Minha mulher e Umberto, desde então ele se tornou o meu maior inimigo.

Aquilo foi a pior coisa que aconteceu em toda minha vida. A morte dos meus pais não doeu tanto, pois foi uma fatalidade. Mas o que Clarice me fez foi muito pior. Foi traição. Quebra de confiança. Aquilo me atingiu como uma bala no peito, estraçalhou meu coração e me destruiu. Como ela foi capaz de fazer isso comigo? Desde então, tudo o que tenho feito é tentar me vingar e destruir cada um deles. Não era o que eu queria, mas foram eles que pediram isso.

Peter - Sede de VingançaOnde histórias criam vida. Descubra agora