Catando latas, Renato não ouvia críticas. Sequer recebia olhares. Os carros, na rua, se desviavam dele. Nas calçadas, desviavam-se as caras. Estava surpreso com o montante de lixo jogado nas ruas. O lixo descartado é proporcional ao lixo consumido, mas o lixo consumido é proporcional ao lixo produzido? Renato estava admirado com a variedade de lixo descartado pelas ruas. E a variedade estava para além da divisão 'papel, plástico e vidro'. Para entender a admiração sentida por Renato, basta ligar a televisão. Entre uma notícia e outra, fala-se do buraco na camada de ozônio, da escassez da água... Entre um bloco e outro, um apanhado de propagandas diz ao telespectador quais produtos ele precisa consumir. Na mídia, quase tudo o que se vê é a promessa de algo 'novo'. Como flores no deserto.
Em dias de campanha eleitoral, toneladas de santinhos são espalhadas pelas ruas. Os 'santinhos' trazem caras maquiadas de promessas e o número do candidato para o eleitor votar. Em dias de campanha, um espírito de vale tudo se apodera da disputa. Além da poluição visual, está a poluição sonora. Os hits do momento tornam-se jingle de político prometedor. Nessas épocas, Renato lembrava-se de uma brincadeira de infância, em que ele e os amigos penteavam o cabelo de lado, ao estilo galã de novela mexicana, sorriam até congelar os músculos da face, enquanto apertavam a mão de um 'público mirim', para, em seguida, subirem em caixas de madeira de armazenar frutas, e repetir jargões como "eu prometo". Ah, também se abraçavam e pegavam os colegas menores no colo. Coisas simples e corriqueiras de campanha eleitoral! Havia, inclusive, a parte dos discursos, e o de Renato era sempre o mesmo. E ria ao lembrar-se das antigas ideias:
"Prometo um mundo onde não haja rico ou pobre, analfabeto ou doutor,
'Gente desbotada' ou 'gente de cor'.
Um mundo onde tomar sorvete seja gratuito,
E brincar no parque, também."
Em sua caderneta reciclada, Renato escrevia as mesmas ideias, em um discurso amadurecido:
Negro liberto, pobre igual, cristão fraterno, vida sem mal.
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O Catador de Sonhos
AdventureRenato, questionador nato, pobre de nascença, renascido, autor de seu renascimento. Um entre tantos descarados e desalmados pela esmagante multidão. Um sobrevivente, um lutador, um vivo de fome, um faminto de amor e, no palco da vida, um ator. ...