Carlos, nessa manhã, ia visitar de surpreza a casa do Ega, a famosa "Vila Balzac", que esse fantasista andara meditando e dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha enfim instalado.
Ega dera-lhe esta denominação literaria, pelos mesmos motivos porque a alugara num suburbio longiquo, na solidão da Penha de França, — para que o nome de Balzac, seu padroeiro, o silêncio campestre, os ares limpos, tudo ali fosse favorável ao estudo, às horas de arte e de ideal. Por que ia fechar-se lá, como num claustro de letras, a findar as Memorias de um Atomo! Somente, por causa das distancias, tinha tomado ao mez um coupé da companhia.
Carlos teve dificuldades em encontrar a "Vila Balzac": não era, como tinha dito Ega no Ramalhete,logo adiante do largo da Graça um chaletsinho retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre árvores. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-se numa vereda larga, entre quintais, descendo pelo pendor da colina, mas acessível a carruagens; e aí, num recanto, ladeada de muros, aparecia enfim uma cazota de paredes enxovalhadas, com dois degraus de pedra à porta, e transparentes novos dum escarlate estridente.
Nessa manhã, porém, debalde Carlos deu puxões desesperados à corda da campainha, martelou a aldrava da porta, gritou a toda a voz por cima do muro do quintal e das copas das árvores o nome do Ega: — a "Vila Balzac" permaneceu muda, como desabitada, no seu retiro rústico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de rolhas de Champagne.
Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados, que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle...
— Vai lá amanhã, se ninguém responder, escala as janelas, pega fogo ao prédio, como se fossem apenas as Tulherias.
Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, já a "Vila Balzac" o esperava, toda em festa: à porta "o pajem", um garoto de feições horrivelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botões de metal, com uma gravata muito branca e muito teza; as duas janelas em cima, abertas, mostrando o reps verde das bambinelas, bebiam à larga todo o ar do campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada, tapetada de vermelho, Ega, num prodigioso robe-de-chambre, de um estofo adamascado do século dezoito, vestido de corte de alguma das suas avós, exclamou dobrando a fronte ao chão:
— Bem vindo, meu príncipe, ao humilde tegurio do filosofo!
Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, de um verde feio e triste, e introduziu o "príncipe" na sala onde tudo era verde também: o reps que recobria uma mobília de nogueira, o teto de taboado, as listas verticais do papel da parede, o pano franjado da mesa, e o reflexo de um espelho redondo, inclinado sobre o sofá.
Não havia um quadro, uma flor, um ornato, um livro — apenas sobre a jardineira uma estatueta de Napoleão I, de pé, equilibrado sobre o orbe terrestre, nessa conhecida atitude em que o herói, com um ar pançudo e fatal, esconde uma das mãos por traz das costas, e enterra a outra nas profundidades do seu colete. Ao lado uma garrafa de Champagne, encarapuçada de papel dourado, esperava entre dois copos esguios.
— Para que tens tu aqui Napoleão, John?
— Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre ele a falar dos tiranos...
Esfregou as mãos, radiante. Estava nessa manhã em alegria e em verve. E quis imediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: aí reinava um cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centro da "Vila Balzac"; e nele se esgotara a imaginação artística do Ega. Era de madeira, baixo como um divan, com a barra alta, um roda-pé de renda, e de ambos os lados um luxo de tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de seda da Índia avermelhada envolvia-o num aparato de tabernáculo; e dentro, à cabeceira, como num lupanar, reluzia um espelho.