Capítulo VI

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Carlos, nessa manhã, ia visitar de surpreza a casa do Ega, a famosa "Vila Balzac", que esse fantasista andara meditando e dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha enfim instalado.

Ega dera-lhe esta denominação literaria, pelos mesmos motivos porque a alugara num suburbio longiquo, na solidão da Penha de França, — para que o nome de Balzac, seu padroeiro, o silêncio campestre, os ares limpos, tudo ali fosse favorável ao estudo, às horas de arte e de ideal. Por que ia fechar-se lá, como num claustro de letras, a findar as Memorias de um Atomo! Somente, por causa das distancias, tinha tomado ao mez um coupé da companhia.

Carlos teve dificuldades em encontrar a "Vila Balzac": não era, como tinha dito Ega no Ramalhete,logo adiante do largo da Graça um chaletsinho retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre árvores. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-se numa vereda larga, entre quintais, descendo pelo pendor da colina, mas acessível a carruagens; e aí, num recanto, ladeada de muros, aparecia enfim uma cazota de paredes enxovalhadas, com dois degraus de pedra à porta, e transparentes novos dum escarlate estridente.

Nessa manhã, porém, debalde Carlos deu puxões desesperados à corda da campainha, martelou a aldrava da porta, gritou a toda a voz por cima do muro do quintal e das copas das árvores o nome do Ega: — a "Vila Balzac" permaneceu muda, como desabitada, no seu retiro rústico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de rolhas de Champagne.

Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados, que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle...

— Vai lá amanhã, se ninguém responder, escala as janelas, pega fogo ao prédio, como se fossem apenas as Tulherias.

Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, já a "Vila Balzac" o esperava, toda em festa: à porta "o pajem", um garoto de feições horrivelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botões de metal, com uma gravata muito branca e muito teza; as duas janelas em cima, abertas, mostrando o reps verde das bambinelas, bebiam à larga todo o ar do campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada, tapetada de vermelho, Ega, num prodigioso robe-de-chambre, de um estofo adamascado do século dezoito, vestido de corte de alguma das suas avós, exclamou dobrando a fronte ao chão:

— Bem vindo, meu príncipe, ao humilde tegurio do filosofo!

Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, de um verde feio e triste, e introduziu o "príncipe" na sala onde tudo era verde também: o reps que recobria uma mobília de nogueira, o teto de taboado, as listas verticais do papel da parede, o pano franjado da mesa, e o reflexo de um espelho redondo, inclinado sobre o sofá.

Não havia um quadro, uma flor, um ornato, um livro — apenas sobre a jardineira uma estatueta de Napoleão I, de pé, equilibrado sobre o orbe terrestre, nessa conhecida atitude em que o herói, com um ar pançudo e fatal, esconde uma das mãos por traz das costas, e enterra a outra nas profundidades do seu colete. Ao lado uma garrafa de Champagne, encarapuçada de papel dourado, esperava entre dois copos esguios.

— Para que tens tu aqui Napoleão, John?

— Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre ele a falar dos tiranos...

Esfregou as mãos, radiante. Estava nessa manhã em alegria e em verve. E quis imediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: aí reinava um cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centro da "Vila Balzac"; e nele se esgotara a imaginação artística do Ega. Era de madeira, baixo como um divan, com a barra alta, um roda-pé de renda, e de ambos os lados um luxo de tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de seda da Índia avermelhada envolvia-o num aparato de tabernáculo; e dentro, à cabeceira, como num lupanar, reluzia um espelho.

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Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho. Ega deu a todo o leito um olhar silêncioso e doce, e disse depois do passar uma pontinha de língua pelo beiço:

— Tem seu chic...

Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um montão de livros: a Educação de Spencer ao lado de Baudelaire, a Lógica de Stuart Mil por cima do Cavaleiro da Casa Vermelha. No mármore da cômoda havia outra garrafa de Champagne entre dois copos; o toucador, um pouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de pó de arroz no meio de plastrons e gravatas brancas do Ega, e um maço de ganchos do cabelo ao lado de ferros de frisar.

— E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?

— Ali! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.

Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um biombo, ao lado da janela, e tomado todo por uma mesa de pé de galo, onde Carlos assombrado descobriu, entre o belo papel de cartas do Ega, um Dicionário de Rimas...

E a visita à casa continuou.

Na sala de jantar, quase nua, caiada de amarelo, um armário de pinho envidraçado abrigava melancolicamente um serviço barato de louça nova; e do fecho da janela pendia um vestuário vermelho, que parecia roupão de mulher.

— É sóbrio e simples — exclamou o Ega — como compete àquele que se alimenta de uma côdea de Ideal e duas garfadas de Filosofia. Agora, à cozinha!...

Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janelas abertas; e entreviam-se árvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois lá em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do colo, ergueu-se, com o Jornal de Noticias na mão. Ega apresentou-a, num tom de farsa:

— A sr.ª Josefa, solteira, de temperamento sangüíneo, artista culinária da "Vila Balzac", e como se pode observar pelo papel que lhe pende das garras, cultora das boas letras!

A moça sorria, sem embaraço, habituada de certo a estas familiaridades boêmias.

— Eu hoje não janto cá, senhora Josefa, continuava o Ega no mesmo tom. Este formoso mancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e príncipe de Santa Olávia, dá hoje de papar ao seu amigo e filosofo... E, como quando eu recolher, talvez a senhora Josefa esteja entregue ao sono da inocencia, ou à vigilia da devassidão, aqui lhe ordeno que me tenha amanhã para meu lunch duas formosas perdizes.

E subitamente, numa outra voz, com um olhar que ela devia perceber:

— Duas perdizesinhas bem assadas e bem córadinhas. Frias, está claro... O costume.

Travou do braço de Carlos, voltaram à sala.

— Com franqueza, Carlos, que te parece a "Vila Balzac"?

Carlos respondeu como a respeito do episodio da Hebrea:

— Está ardente.

Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De resto, para um rapaz, para uma cela de trabalho...

— Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as mãos enterradas nos bolsos do seu prodigioso robe-de-chambre, eu não tolero o bibelot, o bric-à-brac, a cadeira archeologica, essas mobílias de arte... Que diabo, o movel deve estar em harmonia com a idéia e o sentir do homem que o usa! Eu não penso, nem sinto como um cavaleiro do século XVI, para que me hei de cercar de coisas do século XVI? Não há nada que me faça tanta melancolia, como ver numa sala um venerável contador do tempo de Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleições e altas de fundos. Faz-me o efeito de um belo herói de armadura de aço, viseira caída e crenças profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas. Cada século tem o seu gênio próprio e a sua atitude propria. O século XIX concebeu a Democracia e a sua atitude é esta... — E enterrando-se destalo numa poltrona, espetou as pernas magras para o ar. — Ora esta atitude é impossível num escabelo do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o Champagne.

Os Maias (1888)Onde histórias criam vida. Descubra agora