A garota dos cabelos azuis

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CAPÍTULO 1

Tic tac, tic tac, tic tac. Olho para o relógio na parede pensando em como ele não faz realmente esse barulho ridículo que nos ensinam quando crianças. Na verdade, nunca gostei de relógios. O som deles, o som real, me irrita e não gosto de olha-los. Sinto como se estivesse vendo segundos, minutos e horas passando e sendo desperdiçados. Ou, ainda, me torturando com sua demora a chegar no fim. O relógio podia ser misericordioso comigo e acabar com essa merda toda logo.
Estou tão distraído que quase não percebo quando a doutora me chama para sua sala. Levanto da cadeira desconfortável da sala de espera e caminho até a porta de seu consultório. Quando entro, vou até a poltrona laranja e me sento. A mesma poltrona de sempre.
-Bom dia Coren! –a Dra. Jones diz, animada demais. –Como está se sentindo hoje?
-Sei lá. –eu respondo, grossamente
-Vamos lá garoto, como vou te ajudar se você não me diz como se sente? Tente se abrir um pouquinho sim? Não tem nada novo pra me contar?
Toda semana a mesma coisa. A mesma frase dita quando eu não quero me abrir. Isso é tão inútil.
Mas depois de semanas de sessões sem utilidade, acabei de me lembrar que hoje, em específico, tenho algo importante para falar.
-Eu ando tendo um sonho estranho essa semana. O mesmo sonho, todos os dias.
-Pode me contar como foi esse sonho Coren?
-Eu não me lembro muito bem.  Eu estava em frente a um espelho, e havia uma garota do meu lado, segurando um bebê. Essa garota tinha cabelos azuis e nós conversávamos sobre alguma coisa...
-Não consegue se lembrar sobre o que estavam falando? Pode nos ajudar a compreender o significado de tudo isso.
-Era algo sobre ser bom o suficiente pra algo, sei lá. Besteira.
-Por que acha besteira?
-Não sei, não acho que tenha muito de bom ou que seja o suficiente.
-O suficiente para quem ?
-Para mim mesmo. Ou pra alguém.
Nesse momento, a doutora começa a dar alguma possível explicação para esse sonho sem sentido, mas me desligo dela pois algo na mesa de centro me chama mais atenção. Um jornal.
-Espera! –eu praticamente grito, cortando-a, enquanto pulo da cadeira e agarro o jornal.
Nele, vê-se numa notícia muito pequena quase esquecida no canto da folha uma foto de uma garota, com o título de reportagem “Garota esquizofrênica causa acidente de carro na Atlantic Avenue” .  Ela marca a data de uma semana atrás.
-Essa garota... –continuo- você sabe quem ela é?
-A garota do acidente? Não faço a menor ideia. Mas sei o hospital para o qual ela foi encaminhada.
-Pode me dizer o nome?
-Se não me engano, ela foi parar no Mental Health. Tenho uma amiga que é enfermeira de lá e disse que eles receberam uma paciente muito estranha com um cabelo bem... diferente.
É ela. Só pode ser ela.
-Preciso ir.
-Mas você ainda tem 20 minuto e...
Antes que eu se quer possa ouvir o final da frase, já estou fora da sala atravessando o corredor com o jornal na mão. Quando finalmente alcanço a saída do hospital, pego meu celular no bolso e decido chamar um taxi. Por um algum motivo, acho que ir atrás dela vai me dar a resposta que eu preciso pra esse sonho que não me deixa em paz. Além disso, eu lhe devo um certo agradecimento. Ou não. Talvez ela que devesse me pedir desculpas por não ter me deixado ir embora em paz. De repente percebo o quanto estou sendo ridículo divagando a respeito de uma garota que não conheço e, ainda por cima, nem sei se está viva. E o mais ridículo de tudo, é que estou indo atrás dela. Atrás de uma completa estranha.
Penso em desistir, mas o taxi chega antes de essa opção ser considerada, e eu peço que o motorista vá para o  “Mental  Health”. Nunca estive lá, mas tenho a impressão de que não é um lugar muito agradável. Não gosto de hospitais. Nunca fui a um psiquiatra, mas odeio psicólogos. Odeio o fato de serem feitas sempre as mesmas perguntas por pessoas que estão pouco se fodendo para você, desde que elas ganhem o salário prometido.
Como se você não importasse, como se seus problemas fossem só mais um fardo que eles tem que ouvir. Eles nunca te ajudam de fato.
Está chovendo, e as janelas no carro ficam embaçadas. Lembro de quando eu era pequeno, de como eu ficava fazendo desenhos no vidro quando ele ficava assim, lembro de estar fazendo exatamente isso no dia do acidente. Uma lágrima cai sobre a minha bochecha, e eu a deixo escorrer. Apenas uma .
Quase não percebo que chegamos, até que o automóvel para. Pago o motorista, e sem dizer nada, desço. Avisto um prédio grande, branco e sujo. Algumas janelas estão quebradas e outras tem barras de metal, mais grossas que grades. Fico Imaginando quem necessita disso no seu quarto. Decido entrar no ambiente decadente, onde a sala de recepção mais parece um quarto abandonado. Tem goteiras, é cinza, feia e suja. Me direciono a recepcionista para conseguir informações:
-Olá, com licença, gostaria de uma informação...- pergunto, timidamente.
-O que você quer garoto? - a mulher carrancuda me responde de maneira grossa.
-Gostaria de saber em que quarto está uma garota chamada Killena. Ela chegou a uma meia hora atrás, de ambulância. Ela é minha irmã.
-Não quero saber se ela é sua irmã, você fala demais garoto. Cadê seus documentos?
-Perdão, sai de casa correndo, não tive tempo de pega-los.
-Sem documentos, não entra.
Puta merda, será que eu vou ter que quebrar alguém pra poder entrar?
-Me deixe vê-la, por favor. Estou preocupado.
-E o que eu ganho com isso, garoto?
Abro minha carteira e coloco uma nota de cem dólares no balcão.
-Quarto 106, quinto andar. Seja discreto.
Sem agradecer, saio correndo procurando o elevador. Não fico tão surpreso em descobrir que terei que ir pelas escadas, já que o elevador obviamente está desativado. Conto os degraus:
1, 2, 3, 4, 5...“O que eu estou fazendo?” ... 15,16, 17, 18... “Ela nem me conhece.”... 27, 28, 29, 30... “É só uma garota, não vale a pena.” ... 36, 37, 38, 39... “Desista Coren, desista.” 45, 46, 47, 48, 49... “Não.”...50.
Chego no quinto andar, e não sei bem o que fazer. Convenci a recepcionista de me deixar entrar no hospital,  mas não é por isso que conseguirei entrar no quarto. Ando até o fim do corredor, até achar o quarto 106. Todas as portas são de madeira, menos essa, que é de metal. Me escondo atrás de um grande vaso no canto esquerdo da parede. Não que eu esteja muito camuflado, mas isso não é culpa minha e sim da minha altura. Não consigo pensar num bom plano, até que vejo a camareira vindo em direção ao quarto onde Killena está. Quando ela destranca a porta e a abre, tiro um dos sapatos e jogo, de maneira silenciosa, entre a porta e o batente, para evitar que ela se feche. Espio pelo espaço que ficou, e avisto a garota dormindo, ligada a uma máquina de batimentos cardíacos, enquanto a mulher varre o chão distraidamente. Aproveito a situação para enfiar a mão na porta e retirar a chave por dentro. Depois, corro até o fim do corredor  e entro na primeira porta aberta que vejo, a do banheiro. Penso na loucura que estou fazendo e espero até ouvir o som do carrinho da camareira arrastando as rodas enferrujadas no chão e indo embora.
Me direciono para o quarto novamente, tentando não fazer barulho. A porta está novamente fechada, mas parece que a mulher não percebeu que eu havia pegado a chave. Porém, quando eu a abro, faz muito mais barulho do que eu imaginava, e a garota acorda.
-Q-q-q-quem é você? -ela gagueja, assustada.
-Desculpe, não queria te acordar. -eu respondo, impressionado. Ela é ainda mais bonita de perto. -Meu nome é Coren.
Ela agarra o lençol que a cobre e esconde o rosto. Seus braços tem hematomas.
-Calma, não vou te machucar. - tranquilizo-a.
-O que veio fazer aqui? – ela diz, mas não olha diretamente pra mim. Seu olhar está perdido.
-Eu... -céus, o que eu vim fazer aqui? -Eu vim te agradecer.
-Não fiz nada por você. Vá embora.
-Fez sim. Eu... É difícil de explicar.
- Explicar o que? Que você precisou ver alguém morta pra não fazer  isso com si mesmo?
-Como... Como sabe disso? – dessa vez, sou eu quem me assusto.
-As vozes. Elas me disseram.
-Elas sempre falam com você?
-Toda hora. É por isso que eu estou aqui. De novo.
-Já esteve aqui outras vezes?
-Sim... Eu odeio esse lugar. Odeio.
-É. Não é dos mais agradáveis.
-Eles me prendem nesse quarto escuro e me chamam de louca. Eles me drogam e injetam coisas em mim sem me dizer o que são. Eles colocam barras nas janelas e trancas nas portas. Eles acham que estão me ajudando Coren. Mas não estão. Estão me matando.
-Você vai sair daqui ok? Eu vou te tirar daqui.
-Não, vá embora. Não quero te machucar.
-Por que você me machucaria?
-Você não me conhece.
-É. Mas quero conhecer.
-Qual é seu problema garoto? Você não sabe nem meu nome.
-Certo, qual é seu nome?
-Killena.
Killena...Mas que puta nome diferente. Tão forte
-Certo Killena, será que eu tenho chance com você? –eu brinco.
-Incrível como você passou de herói pra babaca em 10 segundos.
-Ei, eu só estava brincando, desculpe.
Ela me encara, em silêncio. Meus olhos azuis encontram-se com os dela, negros, profundos. Eu quero ajuda-la, mas não sei como. Não tem como fugir, e logo algum médico vai me pegar aqui e me mandar ir embora. A não ser...
-Tenho um plano, preciso que você faça um favor pra mim para que dê certo.
-O que eu preciso fazer?
-Preciso que diga que eu sou o seu namorado caso alguém apareça. Pode fazer isso?-ela começa a rir histericamente – Ei, o que é tão engraçado moça?
-Isso seria tão improvável... Mas tudo bem, se vai me tirar daqui.
-Ótimo. Seu sorriso é lindo sabia? Devia sorrir mais. Devia rir assim sempre.
-Se eu tivesse motivos pra isso, não tiraria ele do rosto.
-Por que não me conta sua história Killena?
-Não, ainda não. Nós só namoramos a trinta segundos, é muito cedo. -dessa vez, sou eu quem rio.
-Tudo bem, tudo bem. Só quando estiver pronta então certo?
-Certo. Obrigada.
Sem bater na porta, uma enfermeira entra no quarto, e antes de qualquer coisa, direcionando-se a mim, ela pergunta:
-Quem é você? Quem o deixou entrar aqui?
-Sou o namorado dela. Vim visita-la. A recepcionista disse que eu poderia vê-la sem problemas. -respondo.
-Isso é verdade Killena?
Ela demora a olhar para a enfermeira, e depois de um tempo responde:
-É, é sim. Não o mande embora, por favor.
-Certo, não vou. Qual seu nome rapaz?
-Coren.
-Sente-se, e por favor, não atrapalhe enquanto eu termino aqui Coren.
-Sem problemas.
-Como está se sentindo meu bem?
- Pisca. Pisca. Pisca.
- O que disse?
- A luz. Pisca. Pisca. Pisca.
-Killena, você está divagando de novo.
-Ele está chegando.
-Quem está chegando?
-Pisca.
-Já chega, você é louca. -ela diz abrindo um potinho de pílulas.
-Não sou lo...Pisca.
-Já chega menina!- a enfermeira grita e atira o pote em cima de Killena.
-Não ouse falar assim com ela!
Killena começa a chorar, a enfermeira suspira e faz um sinal para que eu a siga. Nós vamos para o corredor e ela fecha a porta.
-Me desculpe por aquilo. Estou muito nervosa ultimamente.
-Não sei se lhe perdôo.
-Você precisa saber de uma coisa. Killena já esteve aqui várias vezes Coren. Ela é perigosa. Você deve estar com ela a pouco tempo pra não saber disso. Por isso teremos que tomar medidas mais sérias...
-O que você quer fazer com ela?
-A garota está tendo alucinações de novo. As vezes, ela não sabe diferenciar o que é real do que é invenção da cabeça dela. Ela ouve vozes. Isso precisa parar.
-Vá direto ao ponto.
-Killena será submetida a Eletroconvulsoterapia.
-Terapia de choque? Vocês são loucos? – não me contenho, começo a gritar.
-É o procedimento mais indicado Coren. Me deixe explicar melhor...
-Não! Isso é doentio! -não consigo abaixar a voz.
-Doentia é a mente dela. Ela é doente. Ela é louca e você não quer ver isso.
-Por que ela é louca? Por que você decidiu isso? Quem decide o que é loucura agora?
-Pare de ser hipócrita garoto. Você não pode fazer nada. Tome. – ela me entrega uma seringa – É um sonífero. Se ela tiver um ataque, começar a se contorcer ou tentar te atacar, injete nela. Posso contar com você?
Suspiro.
-Sim, claro. – minto.
Ela se vira para ir embora. Imediatamente, avanço para cima dela e a derrubo no chão. Ela se contorce e tenta gritar, mas tapo a boca dela com a mão e abafo o som. Injeto o  sonífero, e ela imediatamente apaga. Saio correndo para o quarto novamente.
-Killena, temos que sair daqui.
-Não tem como sairmos daqui Coren, nós nem temos um plano, eu mal lhe conheço é...
-Agora Killena! – agarro o rosto dela com as mãos fazendo-a olhar para mim – Se nós não fugirmos agora, vão te submeter a eletrochoques. Você não quer isso, não é?
-Não , é claro que não. De novo não.
-Vamos ter que correr.
-Não posso correr Coren, eu fraturei uma costela no acidente esqueceu?
-Porra Killena. Anda, sobe nas minhas costas. Boa
Ela encaixa as pernas na minha cintura e agarra meu pescoço. Seu cheiro é metade doce, como bala de morango, e a outra metade, fumaça de cigarro. Chega a ser confortante. Começo a correr, desajeitado. Todos os quartos estão fechados quando atravessamos o corredor, saltando sobre a enfermeira apagada no chão. Vamos em direção as escadas e descemos, tentando ser rápidos e silenciosos ao mesmo tempo. Chegamos ao térreo, onde a recepcionista pegou no sono. Olho no relógio e já são duas horas da manhã.
-Não tem guardas aqui? -pergunto, cochichando
-Tem, mas eles geralmente estão fazendo tudo, menos o trabalho deles. Veja bem, todas as portas dos quartos ficam trancadas, então ninguém tenta fugir.
-Sorte a nossa. -sorrio.
Olho para porta, e quase começo a rir. Ela é de vidro, com uma tranca de metal no meio e um cadeado.
-Quem é o imbecil que acha que uma tranca vai impedir alguém de abrir uma porta de vidro? – ela ri.
-Temos que quebrar o vidro Coren. Como faremos isso?
-Sinto muito lhe informar, mas o cérebro da dupla não será eu.
-Certo, eu assumo esse papel. Nós podemos..
Ela está prestes a responder, quando de repente, avisto um guarda dobrando o corredor. Ele aponta uma lanterna para nós é grita:
-Ei! Vocês dois! Parados aí!
-Puta merda Killena.
Ele ainda está distante, mas avançando muito rápido na nossa direção.
-Coren, não posso voltar pra lá. Tem que ter um jeito.
-Confia em mim?
-Confio.
-Vou precisar que você corra. Consegue fazer isso?
-Não tenho certeza. Dói muito.
-Vai conseguir. – pego a mão dela – 1, 2, 3...
Começo a correr em direção a porta. Killena geme, eu viro o ombro para que o impacto ocorra sobre ele e não sobre a cabeça. Desviamos do policial e aceleramos. Com o impulso, meu corpo colide no vidro e ele se quebra, de modo que os cacos voam em mil pedacinhos pelo ar. Alguns atingem o rosto do policial, que com a dor, para. Caímos no chão.
-Você está bem? – pergunto, sem ar.
Para a minha surpresa, ao invés de chorar, ela começa a rir.
-Ta brincando? Isso foi insano. Foi... Louco.
-É. Foi louco. -sorrio.
Olho para dentro e vejo o policial se levantando e vindo atrás de nós.
-Suba na minha costas de novo. Precisamos correr.
-Não. Tenho uma ideia melhor.
Ela levanta-se e me guia, mancando, até uma viatura da polícia. Com o cotovelo e um golpe que exige uma força que eu não imagina que ela tinha, Killena quebra o vidro é destrava a porta por dentro. Nós entramos.
-É melhor você dirigir. Não consigo me controlar e posso causar uma acidente, como da última vez. – ela diz, aflita.
Sento do banco da frente e piso no acelerador.
-Esse carro é do policial que estava atrás da gente Killena?
-Claro bebê. Se eu arrombasse outro, ele teria como ir atrás da gente.
-De um jeito ou de outro, vão colocar a polícia atrás de nós.  Precisamos fugir.
-Sair de Carolina do Norte? Pra onde iríamos?
-Eu moro com o meu tio aqui, mas tenho avós que moram na Virgínia. Podemos ir para lá.
-Coren, eu não dinheiro, nem roupas, nada...
-Ei, relaxa. Eu tenho dinheiro pra gasolina, e eles são ricos. Chegando lá, vão nos ajudar, minha vó é um amor. Claro, se nós não contarmos que eu sou praticamente um suicida criminoso e você é louca da cabeça.
Paramos em um sinal vermelho.
-Você...  Você também me acha louca?
-Acho. Maluquinha. E é por isso que eu já gostei de você.
-Não quero ser Louca Coren. Só quero ser normal.
O sinal abre, e nós aceleramos.
-É quem decidiu o que é normal Killena? Você é diferente. Só isso.
-Obrigada. Por me salvar. De verdade.
-Eu te devia.
Sorrimos. Eu ligo o rádio, procurando uma música boa. Quando já passo da estação cem, encontro a minha preferida “Have faith in Me”, e percebo que lembra muito Killena. Tentando não me desconcentrar com a estrada, absorvo a letra:

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