Viajar nunca é uma questão de dinheiro, mas de coragem. Passei
grande parte da vida
correndo o mundo como hippie: que dinheiro tinha, então? Nenhum.
Mal dava para
pagar a passagem, mesmo assim acredito que foram alguns dos
melhores anos de minha
juventude comendo
mal, dormindo em estações de trem, incapaz de me comunicar
por causa da língua, sendo obrigado a depender dos outros até
para encontrar um
abrigo onde passar a noite. Depois de muito tempo na estrada,
escutando uma língua
que não compreende, usando um dinheiro de que não sabe o valor,
caminhando por ruas
que nunca passou, você descobre que o seu antigo Eu, com tudo o
que aprendeu,
é absolutamente inútil diante desses novos desafios e
começa a perceber que,
enterrado lá no fundo do seu inconsciente, existe alguém muito
mais interessante,
aventureiro, aberto para o mundo e para experiências novas. Mas
chega um dia que
você diz: "Basta!" Basta!
Para mim, viajar se transformou numa monótona rotina.
Não,
não basta. Nunca vai bastar insiste
J. Nossa
vida é uma constante
viagem, do nascimento à morte. A paisagem muda, as pessoas
mudam, as necessidades
se
transformam, mas o trem segue adiante. A vida é o trem, não a estação de trem. E o que você tem feito agora não é viajar, mas mudar de países, o que
é completamente
diferente. Balancei a cabeça negativamente. Não
vai ajudar. Se preciso corrigir
um erro que cometi em outra vida, e estou profundamente
consciente desse erro,
posso fazer isso aqui mesmo. Naquele calabouço eu apenas
obedecia ordens de alguém
que parecia conhecer os desígnios de Deus: você. "Além do mais,
já encontrei pelo
menos quatro pessoas a quem pedi perdão."
Mas não descobriu a maldição que foi lançada. Você
também foi amaldiçoado na
mesma época. E descobriu? Descobri
a minha. E, posso garantir, foi muito mais
dura que a sua. Você foi covarde uma vez, enquanto eu fui injusto
muitas vezes. Mas
isso me libertou. Se
preciso viajar no tempo, por que é necessário viajar no
espaço? J. riu. Porque
todos nós sempre temos uma possibilidade de redenção, mas
para isso precisamos encontrar as pessoas a quem fizemos mal e
pedir perdão. E
aonde vou? Para Jerusalém? Não
sei. Para onde você se comprometer a ir.
Descubra o que deixou incompleto e termine a obra. Deus o guiará,
porque no aqui e
agora
está tudo o que viveu e que viverá. O mundo está neste momento
sendo criado e
destruído. Quem você encontrou tornará a aparecer, quem você
deixou partir haverá
de
retornar. Não traia as graças que lhe foram concedidas. Entenda o
que se passa com
você, e saberá o que se passa com todo mundo. "Não pense que
vim trazer a paz.
Vim trazer a espada."
A chuva me faz tremer de frio, e meu primeiro pensamento é: "Vou ficar gripado." Consolo-me pensando que todos os médicos que conheci dizem
que a gripe é provocada
por vírus, não por gotas d'água. Não consigo estar aqui e agora;
minha cabeça é um
rodamoinho completo: aonde devo chegar? Aonde devo ir? E se for
incapaz de
reconhecer
as pessoas em meu caminho? Isso com certeza já aconteceu
outras vezes, e tornará a
acontecer caso
contrário, minha alma já estaria em paz. Há 59 anos convivendo comigo mesmo, conheço algumas de minhas reações. No início de
nossa relação, a
palavra de J. parecia inspirada por uma luz muito mais forte que ele.
Eu aceitava
tudo sem perguntar uma segunda vez, seguia adiante sem medo e
jamais me arrependi
de ter feito isso. Mas o tempo foi passando, a convivência
aumentou e, junto com
ela, veio o hábito. Embora jamais tenha me decepcionado no que
quer que seja, já
não conseguia vê-lo da mesma forma. Mesmo que por obrigação
aceita
voluntariamente
em setembro de 1992, dez anos depois que o conheci tivesse
que obedecer ao que me
dizia, já não fazia isso com a mesma convicção de antes. Estou
errado. Se escolhi
seguir essa Tradição mágica, não devia ter esse tipo de
questionamento agora. Estou
livre para abandoná-la quando quiser, mas algo me empurra para a
frente. Sem
dúvida ele está certo, entretanto me conformei com a vida que levo
e não preciso de
mais desafios. Apenas de paz. Deveria ser um homem feliz: sou
bem-sucedido na
minha profissão, uma das mais difíceis do mundo; estou casado há 27 anos com a mulher que amo; gozo de boa saúde; vivo cercado de gente em que
posso confiar;
sempre
recebo o carinho dos meus leitores quando os encontro na rua.
Houve um momento em
que isso bastava, mas nesses dois últimos anos nada parece me satisfazer.
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Aleph
RomanceTítulo original: O Aleph copyright▪2010 por Thaynara Dias Todos os direitos reservados.nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito dos editores. para J., que me mantém camin...