Eu só queria vê-lo outra vez. Não. Não é verdade. Eu queria tocá-lo. Queria ser tocada, sentir em minha pele o toque de sua mão. Só mais uma vez. Não. Não é verdade. Só uma vez não seria suficiente. Imagina se ele me tocasse só uma vez? Só uma? Não, nunca seria suficiente. Eu ia querer ter tudo de volta. Todo o futuro que não tivemos.
Eu quero ter tudo de volta. Porque a vida não é justa e o tirou de mim.
Percorro o caminho comprido que leva à nossa casa como num sonho. Era por este caminho que passavam nossos pés, meu par de pés ao lado do seu par de pés. Está enlameado, mas ao fim do dia só haverá um par de pegadas aqui. Porque a vida não é justa e o tirou de mim.
Racionalmente ninguém espera que a vida seja justa. Sabemos que não é. Mas, no fundo, esperamos ainda mais do que isso. Esperamos que ela seja boa. Ser boa é ainda mais do que ser justa. Ser boa é relevar nossos erros e nos dar o que desejamos. Eu achava que a vida era boa comigo, porque tínhamos nos encontrado, estávamos juntos, apesar de quaisquer erros que eu ou ele tivéssemos cometido nos anos de vida que precederam nosso encontro. A vida não estava sendo boa, tampouco justa, porque nossa separação brutal e definitiva foi um castigo mais duro do que qualquer um de nossos erros modestos podia pedir. A vida foi só ruim. Caprichosa. Foi essa vida aleatória, como ela é e ninguém quer ver.
Os pés enlameados podem escorregar nos degraus do fim do caminho, que levam para o pátio. É preciso ter cuidado. Ter cuidado não me interessa mais. Não quero ser cuidadosa. Quero ser irresponsável, quero ser temerária. Estou tão sozinha. Tudo que quero é chegar à casa, como se chegar à casa fosse me trazê-lo de volta. Podia correr. Mas se eu correr é ainda menos tempo que eu tenho revivendo este caminho e a doce expectativa de encontrá-lo em casa. Por isso não corro. Sigo no mesmo ritmo arrastado, atiçada por uma luz acesa na casa, uma promessa. No ateliê dele. Preciso tanto vê-lo que sinto os olhos arderem conforme me aproximo, cada vez mais lentamente. Porque, no fundo, tenho medo de chegar até a janela.
Mas até eu, em minha lentidão, acabo por chegar. Ele está lá. Por Deus, ele está mesmo lá, do outro lado da janela, do lado de dentro da casa. Não está olhando pela janela. Por favor, olha pra mim. Eu desejo tantas coisas, mas vou me contentar com isso, juro. Por hoje, sim. Eu vou me contentar com isso apenas. Olha pra mim.
Eu o vejo tão claramente. Ele para o que está fazendo, com os olhos baixos. Acho que respira fundo. E então, lentamente, ergue a cabeça na minha direção. Está de bigode, que diabos, onde ele arrumou isso? Está tão bonito. Parece provocação. Nunca achei que fosse ficar bonito de bigode, mas ficou. Ele está me encarando. Tão sério, com o olhar tão profundo e fixo que é como se me desse uma bronca. Silenciosa, mas muito contundente. Sei tudo o que ele está dizendo, sem palavras. Não. Não quero deixar ir. Não quero seguir em frente. Ele fecha os olhos e balança a cabeça lentamente. Não quero aceitar, como parece que ele já aceita. Ou talvez não aceite... Acho que ele vai chorar. Não quero vê-lo chorar.
Abre os olhos. Olha pra mim, meu amor. Só me deixa morar aqui nesta janela mágica onde posso te ver. Eu vou me contentar com isso, juro.
Não. Não é verdade. Nunca vou me contentar nem aceitar.
A vida não é justa.
*
— Filho?
Viro pra trás de repente, assombrado com o chamado.
— Oi, mãe.
Tinha esquecido que mamãe estava aqui. Como posso ter esquecido que minha mãe estava aqui? Não faz nem dez minutos que a vi, porra.
Estou mesmo assombrado.
Mamãe entra no ateliê com passos discretos, como se temesse invadir. Não escondo a tela. Pra que vou ter vergonha? Sim, eu estou pintando um retrato. Um retrato dela. Que mais eu iria pintar? Que mais eu iria querer lembrar? E nunca esquecer?
Ela põe a mão no meu ombro, olha para a tela sobre o cavalete e diz que está bonito. Eu coço o bigode, sem dizer nada. Não me acostumei. Ao bigode. À presença da minha mãe em casa. À ausência... Pergunta se quero almoçar. Balanço a cabeça fazendo que sim e ela aperta meu ombro uma vez. Antes de se afastar do meu lado, ela olha pela janela grande ao lado do cavalete. Olha e fica olhando, atentamente. Prendo a respiração, tenso. Chego a virar o rosto para ela. Será que está vendo o mesmo que eu?
— Vai chover de novo — ela diz.
E então sai.
Não, não está vendo o mesmo que eu. Não poderia. Certamente mamãe não passou a noite inteira em claro pedindo a um deus em que nem crê por uma visão da mulher amada, como eu passei. E cá está, como eu pedi, a visão que agora me enche de pena. Nítida, bela, assustadoramente real e infinitamente triste. Ela parece cansada. É tão real que acho até que consigo vê-la se molhar quando caem as primeiras gotas da chuva fina. É a última vez que vou pedir, eu prometo para mim mesmo. Só preciso pintar seu rosto mais uma vez e, então, vou deixá-la ir. Não é justo comigo, não é justo com ela.
Mas não há justiça. Só o que há é a morte, aleatória. Não especialmente ruim, apenas indiferente.
A morte não é justa e a tirou de mim.
***
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Janela
Short StoryUm trajeto tão curto quanto o próprio conto. Uma mudança de ponto de vista que fará o leitor compreender - dolorosamente - a verdade sobre esta história. "Janela" é o Onírico 29. Foi sonhado e escrito no dia 21 de julho de 2017.