Capítulo 1: ANO 2000

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ASSEMBLEIA MILENAR DE ASSUNTOS HUMANOS

No salão redondo, poucos olhares prestavam atenção em Ártemis quando ela se levantou e tomou a palavra. Um pé após o outro, a filha de Zeus desceu de seu camarote de herdeira real e pisou no mármore onde tratos indecentes viravam tratados festejados com bailes de gala. Seus brincos de ametista brilhavam no mesmo tom que a íris de seus olhos, e um longo vestido roxo de camurça abria nas costas uma fenda que mostrava a pele negra de seu corpo.

Ao seu redor, o panteão que lhe servia de plateia não esperava nada diferente de cinismo e sorria desinteressado se alguma verdade fosse dita. A indiferença pela realidade era uma condição essencial para uma eternidade confortável, e os milênios do império de Zeus haviam ensinado os exasperados a serem cada vez mais dóceis para garantir o néctar. A doce moeda de troca fazia os imortais serem algo além de pessoas que nunca morriam, e um sorriso submisso era a melhor forma de conseguir mais uma dose.

Quando o salto dos sapatos de Ártemis produziu o som dos passos sobre o mármore, o silêncio cortado estava mais para o tédio que para a expectativa. Também de pé, Hermes dizia algo ao ouvido de Zeus, sem que ele demonstrasse qualquer interesse no que diria sua filha; Posseidom conferia de longe se Eos escolhia as palavras certas ao contar uma história a Hera; Eolo tentava flertar com Atena; Pluto e Íris admiravam as novas jóias de Afrodite; Hefesto fazia anotações. Dos quase trinta presentes, talvez dez fingissem se importar. Talvez três estavam dispostos a ouvir.

- Eu sei que vocês se sentem seguros depois que as bombas atômicas deixaram de ser um perigo para nós. Mas uma coisa precisa ser lembrada, senhoras e senhores imortais: mesmo que os humanos não explodam tudo de uma só vez, eles ainda estão vandalizando os reinos de Zeus e Posseidom, e estamos chegando a um ponto em que as coisas não têm mais volta.

Sem surpresa, o Olimpo passou a receber a fala de Ártemis com ainda menos entusiasmo quando foi confirmado o teor alarmista de seus discursos repetitivos. "Os humanos precisam ser detidos", apostavam que ela diria a qualquer momento.

- Até os domínios de Hades eles já atingiram, e buscam tesouros enterrados cada vez mais fundo. É uma questão de tempo até que eles encontrem algo. Até que façam algo que não poderemos consertar. Perguntem a Deméter quantas espécies já estão extintas. Perguntem a Posseidom quantas ilhas de plástico já estão nos mares.

Ela falava com paixão e começava as frases um tom acima, caçando os olhos de algum desatento com suas pupilas certeiras. Mas nem conseguiu terminar seu raciocínio.

- Ártemis, desculpe a interrupção - A voz rouca e lenta de Posseidom soava educada mesmo quando cometia essas deselegâncias - Eu já propus um dilúvio, e esta Assembleia já recusou. E você votou contra, eu bem me lembro.

Não faltava persistência a uma deusa que repetia a mesma fala diante do mesmo público que já a havia ignorado. E, mais uma vez, não faltou.

- É claro que eu votei! Não podemos exterminar o mundo inteiro se o que estamos querendo é pôr limites nos humanos!

- Mas é exatamente por isso que precisamos retomar a discussão sobreo ateísmo. É uma questão de limites. Se eles pararem de ter fé, como vamos produzir néctar?

Posseidom tinha uma postura que humanos rapidamente reconheceriam como aristocrática. Seu porte robusto no terno alinhado, seu cabelo crespo bem cortado e o modo de falar sem pressa, como quem dita o tempo, mostravam o quanto se sentia à vontade em interromper, silenciar e se impôr. Só que seu alvo não tinha nada de submisso.

- Você vai vetar a minha fala? Se não for, então me deixe terminar.

Ártemis olhou para Zeus depois que desafiou Posseidom. Poucos deuses antigos tinham o poder de vetar as falas dos mais novos, e essa prerrogativa nunca tinha sido usada contra um dos filhos do rei. Bastava que se lembrassem que, sobre suas cabeças, havia uma claraboia que fazia a luz do sol ressaltar o ouro dos camarotes ao cruzar mosaicos de trovões que rodeava a figura do rei dos céus em seu trono. Na imagem de vidro, Zeus estava representado como no imaginário clássico, coberto de panos nobres que formavam uma túnica, e sentado em um trono com duas águias de asas abertas. Quatro grandes colunas sustentavam o teto com o domo translúcido a pelo menos dez metros de altura, projetando o olhar do Rei à posição que ele de fato estava, pairando sobre as falas de todos. Bem menos imponente que na representação artística, o Zeus do presente levantou a mão e pediu calma a Posseidom, com complacência.

Sucessão de ZeusWhere stories live. Discover now