A Casa do Artífice

2 1 0
                                    

ERA UM DIA tempestuoso e a Casa do Artífice se destacava nítida e séria, uma enorme silhueta escura com nuvens revoltas ao fundo. Um vento frio chicoteava por
entre os prédios e pelas praças do Agriont, fazendo as abas da capa preta de Glokta
balançarem em volta do corpo enquanto ele arrastava os pés atrás do capitão Luthar
e do suposto mago, que tinha o nórdico cheio de cicatrizes a seu lado. Sabia que
estavam sendo vigiados. Vigiados o tempo todo. Atrás das janelas, nas passagens,
nos telhados. Os práticos estavam em toda parte, podia sentir os olhares deles.
Glokta havia em parte esperado, em parte desejado, que Bayaz e seus
companheiros desaparecessem durante a noite, mas isso não acontecera. O velho careca parecia tão calmo como se tivesse se proposto a abrir um depósito de frutas.
Glokta não gostava disso. Quando esse blefe termina? Quando ele levanta as mãos e
admite que era tudo uma farsa? Quando chegarmos à Universidade? Quando
atravessarmos a ponte? Quando pararmos diante do portão da Casa do Artífice e sua chave não servir? Mas em algum lugar no fundo da mente outro pensamento
espreitava: E se não terminar? E se a porta se abrir? E se ele for mesmo quem diz?
Bayaz conversava com Luthar ao caminhar com ele pelo pátio vazio na direção
da Universidade. Tão à vontade quanto um avô com o neto favorito e igualmente
tedioso.
–... claro, a cidade está muito maior do que quando a visitei pela última vez. O
bairro que vocês chamam de Três Fazendas está cheio de gente e atividade. Lembro-
me de quando toda aquela região eram três fazendas! Eu me lembro, sim! E ficava
muito além dos muros da cidade!
– Eh... – disse Luthar.
– E a nova sede da Guilda das Especiarias. Nunca vi tamanha ostentação...
A mente de Glokta disparava conforme ele ia mancando atrás dos dois, tentando
encontrar significados ocultos no mar de tagarelice, procurando ordem no meio do
caos. As perguntas tropeçavam umas nas outras. Por que me escolher como testemunha? Por que não o próprio arquileitor? Esse tal Bayaz acha que posso ser
enganado facilmente? E por que Luthar? Porque venceu o Campeonato? E como
venceu? Ele faz parte dessa trama? Mas se Luthar participava de algum plano
sinistro, não dava nenhum sinal. Glokta nunca vira a menor sugestão de que ele
fosse algo mais do que o jovem obcecado por si mesmo que aparentava ser.
E aí temos esse enigma. Glokta olhou de esguelha para o grande nórdico. Não
havia sinais de intenções mortais em seu rosto cheio de cicatrizes – havia poucos
sinais até de que alguma coisa acontecia ali dentro. Ele é muito idiota ou muito
inteligente? Deve ser ignorado ou temido? É o serviçal ou o senhor? Não havia resposta para nada disso. Por enquanto.
– Bom, este local é uma sombra do que já foi – disse Bayaz quando pararam diante da porta da Universidade, levantando uma sobrancelha ao olhar para as estátuas sujas e ligeiramente inclinadas.
Bateu com rapidez na madeira velha e, para surpresa de Glokta, a porta se abriu
quase imediatamente.
– O senhor é esperado – grasnou o velho porteiro.
Eles passaram pelo sujeito, na penumbra.
– Vou levá-los ao... – começou o velho enquanto se esforçava para fechar a porta
que rangia.
– Não precisa – gritou Bayaz por cima do ombro, já seguindo apressado pelo
corredor empoeirado. – Eu conheço o caminho!
Glokta lutou para acompanhá-lo, suando apesar do clima frio, com as pernas queimando sem cessar. O esforço de manter o ritmo mal lhe dava tempo de pensar em como o desgraçado careca podia ser tão familiarizado com o prédio. Mas certamente é. Ele percorria os corredores como se tivesse passado todos os dias da vida ali, estalando a língua cheio de nojo com a condição do lugar e falando o tempo
todo.
–... nunca vi tanta poeira, hein, capitão Luthar? Não ficaria surpreso se soubesse
que esse lugar não foi limpo desde que estive aqui a última vez! Não faço ideia de
como alguém consegue pensar nessas condições! Não faço ideia...
Séculos de adeptos falecidos e devidamente esquecidos olhavam sombrios das
telas, como se incomodados pelo barulho.

                            ~~

Os corredores da Universidade passavam, um local antigo, poeirento e que parecia esquecido, sem nada além de pinturas velhas e sujas e livros velhos e mofados. Jezal via pouquíssima utilidade nos livros. Tinha lido alguns sobre
esgrima e equitação, uns dois sobre campanhas militares famosas, uma vez abrira a
capa de um grande texto de história da União que encontrara no escritório do pai, mas ficara entediado depois de três ou quatro páginas.
Bayaz continuava falando.
– Aqui lutamos com os serviçais do Artífice. Lembro bem. Eles gritavam
implorando que Kanedias os salvasse, mas ele não veio. Esses corredores ficaram
cheios de sangue, ressoaram com os gritos, sufocaram de fumaça naquele dia.
Jezal não fazia ideia de por que o velho o escolhera para ouvir suas histórias empoladas e fazia menos ideia ainda de como reagir.
– Parece... violento.
Bayaz assentiu.
– Foi. Não tenho orgulho disso. Mas às vezes homens bons precisam fazer coisas
violentas.
– Uh – disse o nórdico de repente.
Jezal nem havia percebido que ele estava escutando.
– Além disso, era uma época diferente. Uma época violenta. Só no Antigo Império as pessoas haviam deixado de ser primitivas. Acredite ou não, a Terra do Meio, o coração da União, era uma pocilga. Uma devastação de tribos bárbaras em guerra. Os que tinham mais sorte nelas eram postos a serviço do Artífice. O restante
era um bando de selvagens de rosto pintado, sem escrita, sem ciência, praticamente
sem nada para diferenciá-los de animais.
Jezal olhou furtivamente para Nove Dedos. Não era muito difícil visualizar um estado bárbaro com aquele brutamontes ao seu lado, mas era ridículo supor que seu
lindo lar já fora uma terra devastada, que ele descendia de criaturas primitivas. O
velho careca era um mentiroso descarado, ou louco, mas algumas pessoas importantes pareciam levá-lo a sério.
E Jezal achava sempre melhor fazer o que as pessoas importantes diziam.

O Poder Da Espada - A Primeira Lei  - Joe AbercrombieOnde histórias criam vida. Descubra agora