Que lindo dia, o sol raiou bem cedo. Estava florido, não parecia o começo do inverno. Um sábado glorioso despontava no aniversário de Rochedo. Folhas se acumulavam ao chão, uma brisa suave invadia a vila. A praça estava a ser decorada com palhas, balões, arranjos de frutas e plantas. De certo era um dia feliz e de cor.
As comemorações estavam marcadas para o por do sol, haveria uma missa, e logo após o banquete na praça. A música e a bebida estavam liberados, todos eram convidados, todas as famílias iriam participar. Depois de um período tão longo na escuridão, o ar de progresso estava a dar a todos esperança.
Era cheiro de esperança e este sim, era um sentimento poderoso, capaz de dar movimento, capaz de forçar mudanças. Um fato apenas era incontestável, algo ocorria sem ser percebido, a cor estava voltando. Ainda que não fosse compreensível para quem vivesse ali, uma presença era notada, e desde o acidente com Lisandra, a cor, pouco a pouco estava a tomar conta de tudo.
Mathias foi cedo buscar madeira suficiente para fazer um palco na praça, onde os músicos da região iriam fazer sua apresentação. As beatas cuidavam da fabricação dos arranjos e arrumação das mesas. O Jonas e os rapazes da taberna ficaram responsáveis pelo vinho e pela cerveja. Seria a maior comemoração dos últimos anos.
Joana foi cuidar de Lisandra como sempre, levava seu café e preparava o seu banho. Até aquele momento ela não tinha saído do quarto, não sabia se a filha o faria especialmente naquele dia. O quarto estava frio, estranhamente escuro. Os olhos de Lisandra negros novamente e a encaravam como num desafio. Um frio lhe percorreu a espinha, engoliu a seco, a presença estava outra vez a se fazer notar.
Joana abriu a janela, e com o sol os olhos de Lisandra voltaram ao normal. Era nítido um certo amadurecimento na filha, que sempre portou um ar infantil. Porém, mais forte do que essas mudanças físicas, que lhe pareciam naturais era a sensação de uma presença maligna, a sensação de que algo estava a habitar aquele lugar.
Ela tentou insistir que a filha fosse a festa, mas sem sucesso. O tempo era senhor de tudo, o tempo mostraria o caminho, e iria curar o que fosse preciso. Cuidou de tudo o que devia, e foi até o seu quintal.
Conjurava alguma coisa, uma língua estranha, um som não compreensível. Derramou Leite e mel na terra ergueu seus braços, girava em si mesma. Ficava linda com os cabelos soltos, crescia enquanto mulher. Revelava uma força até então desconhecida por qualquer um que a conhecesse.
Recolheu tudo, passou para ver a filha que dormia, e seguiu a praça.
O Jonas parecia ligeiramente preocupado, estava a falar com todos sobre o desaparecimento de Silas. Ninguém o vira depois que saiu da taberna, ela vendo o movimento se aproximou:
- O que está acontecendo? Cumprimentou a todos, e ouviu com atenção o relato da Ana.
- Parece que o rapaz Silas, o forasteiro, desapareceu. Esteve na taberna e profanou o lugar. Usava uma camisa vermelha e recebeu aquela visita.
- Visita de quem? Joana parecia realmente intrigada.
- Da senhora da floresta. Tenho certeza de que foi ela que teve na vila. Os rapazes não sabem, e tampouco lhes disse nada. Mas só pode ser ela. Faz anos que ela não é vista, muitos a julgavam morta. De certo não é um bom sinal.
Joana ficou atordoada. A sensação da presença era cada vez mais forte, um pavor sem explicação tomou conta dela. Foi correndo para a casa. Viu as botas do Pedro, pensou ainda bem que ele estava em casa, ela precisava lhe falar.
Procurou em todos os cantos e não encontrava. Sem entender o que estava a ocorrer, foi ao quarto da filha. Seus olhos não podiam crer no que vira. Sua casa havia sido profanada. Era a visão mais horrenda que poderia imaginar em sua vida. Ela sabia muito dos desejos e sentimentos do seu marido, mas aquilo era além do que ela poderia suportar.
Suas pernas paralisaram, era a visão mais brutal que algum dia poderia supor. A presença estava lá, aquele ar sufocante, o mal imperava. Não conseguiu falar, não conseguiu respirar. Estava desolada.
Saiu sem ser vista, afinal essa era a sua melhor função, ser invisível. Foi até o seu quarto, procurou o embrulho com a capa, ele havia sumido. Se dirigiu a floresta em desespero.
Na praça todos aguardavam o inicio da missa. Padre Pedro chegou em cima do horário e para o espanto de todos, sua filha o acompanhava mais bela do que nunca. Um rumor cresceu na igreja, olhares desconfiados, outros de admiração. Lisandra desabrochara como mulher, possuía um ar imponente, firme. O olhar era negro, frio e longe de tudo o que estava ali.
O padre pediu silêncio a todos e começou a pregação:
"Irmãos, é chegada a hora de comemorar a obra de Deus. Rochedo foi edificada com o suor de bravos homens e a dedicação de honradas mulheres. É chegada a hora da mudança, os pecados do passado foram pagos com trabalho e fé. O senhor está a abençoar esta terra, esta a nos dar a oportunidade de reconstruirmos nossas vidas e sim, o milagre esta a ocorrer. Vejam o exemplo de minha filha, a luz de minha vida, que retornou de um grave acidente, ressuscitou santificada pela força das orações. Era certa a sua morte, mas para o senhor tudo é possível e ele, ele operou o milagre. E para provar a força de Deus ela esta entre nós, como um recado, uma mensagem divina de que devemos sim, dedicar nossas vidas a Ele. Nossa amada vila, foi assolada por tempos difíceis, por amargos anos de colheitas pobres, da ausência de filhos. Mas Deus é misericordioso, todos sabem o quanto eu luto para que a sua vontade seja feita nessa terra. A tragédia que assolou este chão, agora reside no passado. O perdão nos foi dado e devemos sim, comemorar com fé nos dias que virão. Os mistérios de Deus são grandes, são infinitos, pequena é a compreensão de sua vontade, mas este é o nosso trabalho. É chegada a hora de mudar a nossa história, vamos seguir o perdão de Deus, vamos superar toda a tragédia que um dia nos ensinou que não podemos profanar o solo sagrado. As bruxas, sim, as bruxas não mais habitam entre nós e como prova disso, eu lhe apresento a minha filha, (fez um sinal para que Lisandra tirasse a capa) de vermelho. Não temam, a nossa penitência acabou."
Ele segurou sua mão com firmeza, enquanto todos a olhavam surpresos, ele sentia os efeitos da presença dela. Lembrava de suas ancas brancas, de sua carne úmida, de como era bom estar dentro dela. O perfume daquela pele em seu corpo, a doçura de seus seios. Um desejo incontrolável tomava conta dele, a excitação era violenta, sua fome também.
Lisandra apenas sorria, cumprimentava a todos com o olhar. Estava distante, mas uma coisa era incontestável, ressurgira uma mulher.
Padre Pedro sussurrou algo em seu ouvido e encerrou o seu discurso:
"Não temam mais, a maldição acabou. O milagre veio nos redimir. Contemplem, vejam por si mesmos. Lisandra é a única que pode portar o vermelho, é o sinal de que Deus nos deu uma nova chance. Viveremos esta chance no amor, no perdão, na bondade. Não devemos temer o mal, durante muitos anos eu incentivei este pensamento e vejo que estava errado. Devemos enfrentar com a cabeça erguida. Não vamos mais nos esconder. Irmãos, toquem a Lisandra e sintam o poder de Deus. Ela é o milagre."
Alguns caíram aos prantos, as mulheres gritavam aleluias. Os homens estavam surpresos, e faziam sinais aos céus. Lisandra cumprimentou a todos, era tocada por eles. Sorria com seus belos olhos negros, aos quais ninguém notara. Todos estavam encantados, e alguns gritavam: ela é santa.
A festa transcorreu plena, muita dança, muita fartura a tomar conta de todos. A ausência de Joana não foi sentida, mal se falava do Silas. Uma alegria alucinante tomou conta de todos ali. O álcool estava a correr. Padre Pedro feliz falava alto, dava boas vindas. Manteve todo tempo sua filha a seu lado, estava em êxtase.
Uma espécie de transe estava a invadir, Lisandra caminhou em direção da fogueira. Uma excitação marcante tomava conta dos que ali estavam, as bocas salivavam, os olhares buscavam onde saciar a fome. A luz da fogueira a deixava mais bela, e as mulheres passaram a deseja-la também. O tesão era forte, todos a queriam consumir, todos sentiam fome. O padre estava encantado, o volume sob suas calças não era mais disfarçado. Uma onda de calor inundou o local.
Um raio estalou ao longe, surgiu com o vento a Joana. Estava apenas com uma capa negra, corpo nu completamente cortado e marcado. Nas suas mãos um punhal, em seus olhos o vazio. Falava uma língua desconhecida, parou diante da fogueira, olhou Lisandra, sangrou sua mão e atirou o sangue ao fogo. As chamas subiram numa altura incrível. Mal era possível ouvir a sua voz, todos estavam perplexos com o que acontecia. Ela começou a girar e a encarar a todos, apontou os braços aos céus, retirou a capa, olhou pela última vez para Lisandra, e cortou a garganta com o punhal.
A chama apagou.