Prólogo

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Laila estava pela milionésima vez evitando sua mãe, se escondendo na biblioteca da cidade. Não tinha como a mulher ser mais intragável. Ela passara o dia anterior inteiro falando sobre como Laila, sendo uma dama, deveria aprender a se comportar melhor, sorrir mais e ser mais simpática com os homens que a rodeavam. "E pelo amor de Deus Laila, ajeite esse vestido".

Ela nunca seria simpática com os homens que a rodeavam. Principalmente por que dá última vez que um tentara se aproximar dela, ele acabara deixando escapar que tinha uma posição bem contrária a abolição. Vivendo no Oeste, era de se esperar que as pessoas fossem mais progressistas que no extremo sul do país. Ainda assim, Laila sabia que esse racismo entranhado era quase unanimidade em São Francisco. Não conseguiu evitar dar um sorriso amarelo e sair de fininho, com uma desculpa mais esfarrapada que as calças do Nhô Lau, o tio de sua melhor amiga Willow.

Sim, Laila era amiga de uma negra liberta. O que por si só já deixava sua mãe de cabelo em pé. Ela costuma frequentar os bares de "gente de cor", as tardes, escondida é claro. Não que ela gostasse da música, ela até gostava, mas por mais que quisesse, Laila sabia que nunca seria igual a eles. Forte, resiliente e alegre. Talvez, ela nem quisesse. Ela só queria se sentir um pouco livre de vez em quando. E principalmente se sentir conectada com o pai. Que amava os estranhos sons feitos pelos negros.

Aquela semana tinha sido cheia de jantares especiais. Todos, é claro, para esconder a cada vez mais desesperadora situação das mulheres Davies. Por anos elas tinham conseguido manter a pequena fortuna adquirida pelos ancestrais. O problema era que os Estados Unidos da América estavam mudando rapidamente.

Crise econômica, o sistema escravagista já não funcionava, novos territórios que iam sendo adquiridos todos os anos. E principalmente, o novo status da Califórnia como pertencente a organização americana. Tudo isso fazia com que fosse quase impossível manter uma aparência aristocrática "naquela terra de mestiços esquecidos por Deus" que era a Califórnia, como gostava de se lamentar a matriarca da família.

Era irônico, realmente. As pequenas senhoritas Davies eram mestiças. Netas da mais bela negra de São Francisco. Como haviam nascidos brancas, graças ao restante dos seus ancestrais, Agnes, a mãe, fazia questão de esquecer este fato.

5 anos antes, quando a Califórnia passara de Colônia espanhola a Americana, Agnes, que aprendera inglês em um colégio interno da França e que sempre abominara essa língua menor que era o espanhol, passou a falar apenas em inglês, ocasionalmente francês, aumentara seu ranço contra os milhares de imigrantes e pessoas pobres que viam todos os dias atrás do Ouro e das degenerações que apenas São Francisco era capaz de produzir.

Odiava o Oeste dos Estados Unidos, admirava a Europa, mas continuava a agir como se fosse sua obrigação moral mostrar aos infelizes São franciscanos como se portava alguém verdadeiramente digno e aristocrático.

Peter Davies, seu falecido marido, era uma história totalmente diferente. E, para seu incrível desgosto, sua primogênita herdara o caráter rebelde dele. Peter era filho de um dos maiores fazendeiros do oeste dos Estados Unidos. Alguém que cedo entendera que o ouro não era mais a resposta, mas sim o Algodão, um pequeno pedaço de nuvens que dava em uma flor. Só que, o que ninguém fazia questão de lembrar, era que Peter Davies, o rico herdeiro dessa fortuna, também era filho de uma negra. Mais uma das histórias complicadas de amor de São Francisco.

Com o tempo, todos na pequena cidadezinha esqueceram a descendência dos Davies. Peter conseguira se casar com Agnes Boycene, filha de uma rica família de imigrantes franceses, que ao ver a fortuna considerável do pretendente, logo ficou feliz de entregar a filha, mesmo que fosse para alguém, muito que remotamente, ligado a uma escrava.

Ele conseguira uma linda mulher e filha loira, de olhos azuis, sem nenhum traço de descendência africana... E Laila, que tinha a pele morena como oliva e o cabelo mais negro do que carvão. Sorte que pelo menos seus olhos era cinzentos, cortesia do avô Paterno. Seu cabelo teve o bom senso de nascer liso, o que deixou Laila parecidíssima com as hispânicas do outro lado da cidade. Sem mencionar sua altura que, por deus, era baixa demais.

Petrick Davies morrera há mais de 5 anos mas, mesmo assim, era algo que Laila odiava ter que se lembrar toda amanhã. Ele não estava mais lá, a única pessoa no mundo que tinha entendido Laila. Só sua mãe e sua irmã, implorando para que ela fosse alguém que ela nunca seria.

Então lá estava ela, pela quarta ou quinta vez na semana escondida entre os livros, na biblioteca de Amélia Li. Amélia era filha de imigrantes chineses, os chinas, como as outras etnias que formavam gostavam de se referir pejorativamente a esses imigrantes. Laila duvidava que existisse alguém mais doce que ela. As duas tinham um acordo tácito. "Você não me viu aqui e eu não vi que você tem livros sobre a abolição e pornografia". As duas se cumprimentaram e iam fazer o que tinham que fazer, sem maiores trocas de palavras.

Mas assim que Laila baixou os olhos para uma edição envelhecida Macbeth alguém entrou na pequena livraria esbaforido.

—Oh graças a Deus, finalmente encontrei você- diz o desconhecido se dirigindo a moça.

O homem tinha um estilo diferente. A garota logo soube que ele tinha vindo do norte. Além disso seus olhos azuis eram tão inocentes que ela teve certeza absoluta que ele nunca tivera que lidar com os perigos de São Francisco.

—Humm, er... desculpe eu sei que deveria estar em casa, já estou indo- Laila falou, achando que de novo sua mãe a tinha encontrado e ela estava prestes a receber uma bronca.

— Casa? Não eu não estou aqui para falar sobre isso- diz o desconhecido se sentando na frente dela – Meu nome é Peter  Crimsom, e eu vim lhe oferecer um emprego.

Casa DivididaWhere stories live. Discover now