05. Timbres

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Alguns dias depois.

A consulta em plena tarde é mais uma novidade para mim. Parece-me que a Dr. ª Patricia reveza nossos encontros entre o habitual e inovador, por mais estranho que possa parecer, gosto disso. Estou me acostumando com novas situações; não que isso tenha se tornado algo de minha preferência, jamais, mas não me assusto mais.

Apesar das modificações corriqueiras, uma coisa se mantém em todos os atendimentos — talvez a mais importante: Iris. A moça dos olhos brilhantes vem nos acompanhar desde minha aprovação. Devo admitir que sua presença me traz conforto, ela é quase tão boa quanto observar o céu em noite estrelada.

Desta vez, a ideia diferenciada da psicóloga foi que construíssemos um sistema solar com argila. Eu gostei da ideia, apesar de tamanha sujeira. Nunca havia encostado nisso antes, é gostoso, macio. Porém, o mais interessante é como um simples toque consegue transformar um pedaço de barro em arte.

Neste instante, moldo o formato de Netuno, um tanto maior que a Terra e um bom tanto menor que os demais gasosos. Não está completamente redondo, entretanto, estou bem orgulhoso com o que estou fazendo. Acredito que eu tenha pegado o jeito de modelar.

— Acho que pegou o jeito. — confirma a minha hipótese a filha da psicóloga.

Abro um sorriso no rosto e assinto, esbanjando minha felicidade.

— Enquanto o sistema endurece, faremos outra atividade. — ergo uma das sobrancelhas. — Algum problema?

— Cor... eu gostaria de pintá-lo.

— Não se preocupe, Henry. — conforta-me a estudante. — Nós o pintaremos na próxima consulta.

Ciente de que as mudanças, agora, fazem parte de minha vinda, não hesitei entrar e analisar o tapete todo colorido. Sentindo-me puxado, ou, até mesmo, obrigado a me sentar junto a elas,

Pelo canto do olho, espio Iris se empenhando em encontrar uma posição confortável no tecido. Não demora para que ela, ao que tudo indica, obtenha sucesso. Observando do chão, onde um espaço maior se formou com o afastamento dos móveis, concluo que as mudanças estarão cada vez mais frequentes. Aceitá-las, no entanto, não é uma tarefa tão fácil.

— Quer falar sobre você?

O timbre de sua voz é calmo, não muito alto, nem muito grave, gosto de ouvi-lo. No primeiro dia, fiquei receoso por ter uma estranha perguntando coisas minhas o tempo todo, agora encaro isso como um novo costume. Porém, embora seu tom me agrade, compartilhar coisas sobre mim ainda não me convém.

Discordo com a cabeça, desviando os olhos para uma pequena planta roxa que embeleza a mesa estante na parede. Sei que ela observa todas as minhas ações, enquanto anota em uma caderneta palavras misteriosas que atiçam minha curiosidade. Não compreendo o porquê de só nós dois estarmos sentados aqui, com a psicóloga, de sua mesa, a nos observar de longe.

— Você pode confiar na Iris, Henry. — eu confio. — Conseguimos vencer mais uma etapa na consulta passada, quero que continue se esforçando.

Desconfortável, ajeito minhas pernas na posição dobrada e retiro minha atenção da bonita flor. Hoje tive a chance de fazer meu próprio espaço, falar sobre os assuntos que tenho aprendido. Já me esforcei, elas pareceram gostar dos momentos em que eu falava. Foi bom vê-las sorrirem nas quebras de silêncio; aquilo fez eu me sentir... inteligente.

Agora é diferente, no entanto.

Não sinto vontade de olhá-la. Estou sendo analisado, isso não é do meu agrado. Rumo o olhar para o tecido abaixo de meu corpo, o repleto de cores diferentes, e me distraio. O tom do retalho azul me lembra o dos olhos de Iris, o que me recorda que simplesmente descartei uma conversa.

— Per... pergunte-me outra coisa. — murmuro, balançando os ombros em forma de desinteresse no assunto anterior.

Por dentro, algo se revira quando penso nas perguntas as quais terei de responder.

— Qual é seu gosto musical?

O propósito de manter meu olhar fixo em qualquer lugar que não seja ela se perde; já é tarde, eu a encaro, surpreso, por, em partes, não ter entendido a pergunta.

— O quê? — franzo a testa.

— Que tipo de música você gosta de ouvir? — torna a questionar, ainda mais interessada.

— Ah... não gosto de músicas, elas me incomodam. Incomodam.

Qualquer barulho muito diferente, alto ou próximo demais me assusta. Gosto do silêncio, do som dos meus pensamentos; interesso-me por ouvir as pessoas falando sobre estrelas na televisão, documentários, de um modo em geral. Músicas não me ensinam coisas, por isso, não se encaixam nos meus gostos.

— Escutou a música errada, tente Yellow do Coldplay. — desenrugo o cenho e mostro-me levemente compreensível — É uma das minhas preferidas, ela acalma. Coloque-a em volume baixo enquanto faz alguma outra coisa. Depois, conte-me o que achou. — mesmo desconfiado de que isso não me agradaria, concordo, encerrando o assunto.

Em meio aos minutos seguintes, não há nada mais relevante a ser discutido. Tento me mostrar interessado sobre o que Iris diz sobre ritmos distintos, mas uma curiosidade inédita controla minha mente agora imune às perguntas que me são feitas.

Yellow.

Guardo o nome da música em um canto da cabeça onde será impossível esquecê-la. Mais tarde, assim que eu chegar a minha casa, estarei a procurá-la e conhecê-la. É provável que eu a desgoste, contudo, não me custa tentar.

A porta se abre, quando a psicóloga dá a consulta por terminada. Levanto-me para ir embora e despeço-me cordialmente, com uma simples assentida; por sua vez, Iris, sorridente, acena amplamente, um ato sutil que me causa um efeito estranho: eu coro.

No instante em que o carro estaciona em minha casa para jantarmos, conversamos brevemente sobre meu sistema solar de argila. Minha mãe diz algo que me chama atenção. Para ela, nestas últimas semanas, eu tenho estado mais calmo e feliz.

Ao terminar, rumo ao quarto para dar início ao que ocupa todos os espaços de meu cérebro: o pedido da filha da doutora. Yellow. Volume baixo. Enquanto faço outra coisa.

Obediente, procuro na internet a tal música; não é difícil encontrá-la, pelo contrário, é logo a primeira. Deve ser muito conhecida. Em seguida, confiro se o volume está em uma altura audível, porém confortável aos ouvidos.

O ritmo me causa estranheza de imediato. Insisto um pouco, identificando que é lento, transmite, de fato, calmaria. A voz do cantor é aveludada, gostosa, como a textura de meu cobertor. Prestando atenção na canção, percebo que ela também fala sobre estrelas, a beleza e algo que até então não conheço... o amor.

Aproximo-me da luneta embicada à janela, inclino-me a encaixar um de meus olhos no monóculo e observo a imensidão negra salpicada de estrelas. Enquanto o timbre dócil massageia meus tímpanos e faz meu corpo de morada, percebo o porquê da Iris gostar tanto desta música. A verdade é que as estrelas amarelas brilham, iluminando todos os caminhos, exatamente como ela.

Ruídos de SaturnoOnde histórias criam vida. Descubra agora