Capítulo I - Zyra

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— Creio que eu nunca vi alguém saborear uma água com tanto prazer.

Meu corpo congela ao ouvir uma voz grave sussurrando em meu ouvido, me pegando completamente distraída. Não consigo entender. Meus delírios já possuíram diversos níveis de intensidade ao decorrer dos anos, mas algo neste nível não acontece há muito tempo, não quando eu evitava o máximo pensar e imaginar.

Não posso estar perdendo a minha sanidade novamente.

Mas então escuto o barulho da respiração baixa e o ar quente batendo em minha nuca. Todos os meus músculos parecem estar totalmente travados.

Isso não pode não ser real.

Meu corpo demora alguns segundos para responder, e então me viro rapidamente, batendo com as costas no poço. Fazendo de tudo para não encostar nossos corpos, o encaro sem conseguir falar.

Isso é real.

— Receio que ninguém tenha me avisado que a garota é muda. — escuto seu murmúrio impaciente.

Não consigo fazer nada além de observá-lo. O homem em minha frente deveria possuir pelo menos 1 metro e 80 centímetros, tinha cabelos loiros perfeitamente alinhados. O sol estava tão forte que não conseguia distinguir a cor de seus olhos entre verde e azul, muito menos entendia como que sua pele conseguia ser tão pálida e clara vivendo lá fora. O homem usava um sobretudo longo e negro que estava entreaberto, relevando uma blusa verde escura e um punhal preso em sua calça também negra, me forçando a encarar a arma.

Finalmente o mundo ficará livre de mim? Tento descobrir em meu cérebro como as palavras são formadas.

— Tenho que lhe alertar que encarar um homem armado é um tanto quanto perigoso, até mesmo para a senhorita. — o homem me dá as costas, o tédio rodeando sua voz, ele andava devagar como se estivesse observando cada canto. — Devo dizer que acreditava que aqui seria um pouquinho menos... — ele hesita por um segundo. — Organizado.

— Como conseguiu entrar aqui? Quem é você? O que você quer?

Subitamente, todas as palavras surgem, se atropelando em meus lábios. Preciso me agarrar na beirada do poço para não cair, o pavor e a curiosidade em meus olhos. Ele apenas me olha pelo ombro.

— Então você fala.

— Quem é você?! — escuto minha voz descompassar de leve.

— A senhorita deveria ser um pouco mais educada.

— QUEM É VOCÊ?

Sinto a energia percorrer meu sangue e se concentrar em minhas mãos, estourando os tijolos que estava apoiada. Vejo-os virarem pó e lascas entre meus dedos, jogando os pedaços ao meu redor. Assusto-me e o encaro, procurando alguma expressão de espanto. Qualquer pessoa faria isso ao ver o que eu acabara de fazer, mas ele não. Ele apenas me olha e noto um pequeno brilho no fundo de seu olhar, porém sua face muda rapidamente, tornando-se séria.

— Certo, perdoe meus modos. - ele fala ainda entediado. — Meu nome é Aedris Di Angelis. Príncipe herdeiro do reino de Neryan, território ao oeste de Sibree, nos três reinos. Ah, também posso ser conhecido como a ovelha negra da família real! Um título inesquecível, não concorda? — ele sorri de canto por um momento. — Tenho ordens da Majestade de Sibree para retornar ao reino com você, garotinha.

Por que meu pai perderia o tempo dele mandando alguém me tirar daqui depois de tantos anos? Creio que Ezryel finalmente desistiu de tentar me proteger, que finalmente abriu mão de mim e sua promessa. Não o culparia por isso. Ter um monstro como irmã é um fardo que ele não deveria carregar.

          

Na verdade, não é um fardo que ninguém deveria carregar.

— Meu nome é Zyra, não garotinha. — retruco.

— Acredito que eu saiba mais sobre a senhorita do que você imagina. — ele dá de ombros. — Arrume suas coisas, ou o resto do que sobrou. A viagem é longa. — ele hesita. — Aliás, crendo que isto — ele aponta para meu vestido com o queixo levemente. — é o melhor que tem, acho uma ótima ideia que você apenas largue tudo por aqui. No palácio lhe darão vestimentas melhores. Nós partiremos logo. Vejo-lhe amanhã. — ele me dá as costas, começando a caminhar.

— Espere, para onde você vai?! — caminho tentando lhe acompanhar, sentindo meu tom de voz falhar, assustado.

— Não irei a lugar algum, princesa. Nós estaremos do lado de fora da muralha durante esta noite, apenas. — ele para de se mover apenas para me responder, sem me olhar.

— Nós? Que nós?

— Sim, nós. Acha mesmo que o rei me mandaria sozinho? — consigo ouvir a diversão em sua voz. — Quer dizer, não preciso de um guarda-costas, mas o rei acredita que você definitivamente precisa de um. Ele fala de você como uma garotinha assustada, que não consegue se controlar, principalmente suas mãos. — Aedris fala, sem demonstrar sentimento algum em sua voz.

— Ele fala assim?!

Esqueço-me de tentar parecer calma ao falar. Ouvir meu pai falar assim de mim me assusta completamente, visto que ele me chamou de coisas piores no decorrer de minha infância, como demônio, bastarda, abominação, monstro e outros nomes que me arrepio só de lembrar. Ele nunca pareceu realmente se importar comigo a ponto de achar que eu deveria ser protegida.

Na verdade, meu pai nunca pareceu se importar com nada que viesse de mim. O maior sonho dele era me matar, ainda mais depois do que fiz para todos, para ela.

— Ah, fala sim, por que tanta surpresa? — ele se vira em minha direção. — Aliás, Vossa Majestade parece sentir sua falta, visto que apenas me pediu para fazer isso pessoalmente, ao invés de somente ordenar para o primeiro guarda que visse pela frente.

Não consigo respirar após ouvir Aedris falar. Não consigo pensar. Não consigo fazer nada além de me perguntar os motivos para meu pai sentir minha falta. Seria isso somente um joguinho mental de Aedris? Ele não demonstra sinal algum de sorriso, como se tivesse feito alguma piada. Na verdade, ele está apenas sereno, normal. Seria isso um sonho, então? Porque parece bem real para mim. Isso me faz morrer mais ainda por dentro.

Eu já estava morta por dentro.

— Parece que alguém perdeu a língua novamente. — ele se vira novamente. — Bem, como eu disse, esteja pronta amanhã cedo. Sem atrasos, certo? — ele volta a caminhar. — Feliz último dia dentro das muralhas, Zyra. — ele bate na porta como em comando e logo as portas da muralha se abrem.

Fico petrificada no lugar enquanto o vejo sair. Sei que Aedris não pode encostar em mim, porém a onda de medo não deixava de percorrer minhas veias. Então me perguntei se estar perto da morte era pior do que viver esperando por ela. Não conseguia responder. Eu apenas queria ficar trancada ali, queria fugir, queria deixar de ser uma aberração, queria morrer, não queria morrer, queria não ter que encarar meu pai, queria matar Aedris simplesmente pelo fato de ele ter aparecido em minha frente.

Queria chorar.

Por todos esses anos imaginava o dia que alguém me mataria. Imaginava o dia em que eu finalmente conseguiria ter paz. Agora que a possibilidade de sair daqui bateu na porta só consigo sentir pânico em minhas veias.

Aedris seria um dos pássaros de meus sonhos? Aquele que ensinaria minhas asas a voarem? Seria ele minha liberdade? Ou seria apenas a pessoa que trazia meu destino? O executor de minha morte, ordenada pelo meu próprio pai?

Creio que a segunda hipótese é a mais correta, pelo menos é a mais justa.

E agora, o que eu devo fazer? Devo arrumar minhas malas? Mas que malas? O que fazer o que fazer o que fazer o que fazer o quê?

Corro para a cabana balançando a cabeça, tentando afastar todos os pensamentos e falhando enquanto fechava a porta com a maior força que conseguia exercer e escorregava por ela e caía no chão e chorava e chorava e chorava.

Eu estou feliz. Eu estou triste. Eu estou esperançosa. Eu estou devastada.

Fiquei horas ali, sem me mover, em silêncio, sem pensar, sem sequer existir enquanto chorava. Não conseguia acordar, não conseguia dormir, não conseguia viver. Eu nem sei o que é realmente viver. Eu nem sei como é estar lá fora. Não sei se as pessoas ainda possuem a mesma face. Como será que morrerei? Demorará? Acontecerá logo? Por que estou contente de sair? Por que estou com medo de sair?

O que será de mim?

Encontrei apenas um errinho de ortografia, idéia/ideia.  Gosto/não gosto do Sebastian, estou confunsa em relação a ele.

7y ago

Sinto que você talvez me ferre com esse livro

7y ago

Coroa de Sangue e EspinhosWhere stories live. Discover now