Dias atuais...
... O ar rasga meu peito enquanto continuo correndo pelo extenso corredor. Posso ouvir os passos atrás de mim soando como marteladas no coração. De repente vejo uma luz lá no fundo, sei que é a porta de saída e que estou bem perto, mas então... Eu tropeço em algo frio e pegajoso, caio em um baque surdo no chão empoeirado, olho apavorada procurando o motivo da minha queda. Então vejo... Vejo os mesmos olhos que velavam meu sono, porém sem vida. Vejo o mesmo peito, que tantas vezes recostei a cabeça, coberto de sangue.
O ar parece uma massa pesada demais para conseguir inalar. No entanto, antes de ter tempo para qualquer reação, o chão se desfaz, e todo aquele cenário volta à habitual escuridão sem fim do dormitório frio e mofado onde passo todas as minhas noites.
O meu pesadelo fictício acaba, porém, percebo o pior. Poderia suportar qualquer pesadelo desde que este ficasse restrito ao sono. Mas todos os dias, quando acordo, percebo que tudo é real. De repente, tudo, aquele mundo, meus problemas... Tudo é demais para suportar. Me dobro em um choro compulsivo, sinto as lágrimas rolarem e molharem o travesseiro de textura muito áspera.
Choro até as lágrimas secarem e o dia clarear. Então já é hora de voltar ao trabalho.
Todos os dias são as mesmas coisas: levantar, arrumar todo o dormitório, pegar o material de limpeza na dispensa, ir à cantina, esperar as ordens de Lúcia, e partir para o trabalho pesado até à noite, parando para meia hora de almoço.
Assim se resume meus dias na Indústria. O simples trabalho de uma faxineira, mas não é qualquer trabalho. A Indústria é ilegal então não temos nossos direitos trabalhistas. Fui trazida para cá há 7 anos. Todos aqui vivem na mesma condição: são trazidos como escravos, posso dizer.
Não se sabe qual a localização do galpão, sendo assim, é impossível fugir.
Mas toda regra tem uma exceção! Eu vou sair daqui, vou recuperar minha vida que foi interrompida, e, principalmente, vou ajudar as pessoas que estão aqui.
***
O horário de almoço sempre é tumultuado, afinal trabalhamos horas a fio, sem descanso, alimentados a base de pão e água. A oportunidade de se manter em pé está no almoço.
Olho ao redor da imensa sala de paredes cinzas cobertas por fuligem e abarrotada de pessoas sujas vestidas com as mesmas roupas puidas de cor rubro e um azul tão gasto que parece um cinza qualquer. Meus olhos varrem os rostos procurando os olhos negros e a pele bronzeada, até que os encontro no fim da fila para pegar o alimento. Corro até lá e abraço minha amiga.
Conheci Kathy logo que cheguei aqui, os dias de viagem em um velho navio cargueiro sem alimentação e na situação de higiene precária, me trouxera algumas doenças e fraqueza extrema, Kathy me ajudou e, graças a ela, consegui sobreviver, desde então ela está comigo.
- Oi Anne. Você está horrível, teve pesadelos outra vez? - perguntou com olhos preocupados.
- Quando é que não tenho? Mas essa noite foi pior, vi os rostos de mamãe e papai, foi horrível. - contei com a voz embargada desviando os olhos para o chão.
- Vai ficar tudo bem querida. - a voz melodiosa me preencheu enquanto seus braços me acolhiam.
- Eu sei - murmurei incerta.
Kathy era mais velha que eu, tinha 30 anos, estava na Indústria há dez. Era uma mexicana linda, alta, cabelos castanhos quase pretos e olhos negros como a noite, no entanto, o tempo e o trabalho duro, enterrou sua jovialidade, agora os traços de seu rosto eram mais duros, e o sorriso, raramente, se apresentava em seu rosto, mas sua pele ainda tinha um tom bronzeado.
Ela veio parar aqui aos 20 anos. Sua mãe estava doente e estavam sozinhas no mundo. Para melhorar as finanças da família, entrou em um negócio de tráfico de drogas chefiado pelo dono da favela onde morava. Porém, uma das cargas foi roubada e ela não pode arcar com o prejuízo, para pagar a dívida ele à mandou para uma das fábricas onde era sócio, e cá estamos.
- Vem vamos pegar a comida. - disse em uma voz mais animada me puxando para a fila.
A comida era simples, arroz, batatas e peixe. Comemos rapidamente em silêncio. 2 horas da tarde e era tempo de voltar às tarefas. Todo o trabalho terminava às 7 horas da noite, então tínhamos mais uma refeição e era hora de dormir.
A rotina era sempre a mesma.
No fim da noite, depois da refeição, me permiti observar com atenção os detalhes daquele lugar. A cantina, era simples, assim como cada cômodo do lugar, tinha paredes cinzas e velhas, nos cantos era possível notar o mofo e o musgo subindo lentamente, havia pequenas rachaduras que pareciam pernas de uma aranha gigante e magra. O chão era de concreto. O recinto era preenchido por mesas e bancos de madeira envernizada gastos e desbotados. Ao canto em uma parede à esquerda da porta de saída tinha um fogão ao lado de uma grande mesa onde se colocava os alimentos.
A porta de saída dava em um imenso corredor, este acompanhava a mesma simetria de cores no chão e paredes, havia portas para todos os lados, estas davam nas salas de trabalho dos funcionários. Na última porta ficava o dormitório. A única diferença deste cômodo para a cantina era que em lugar de mesas haviam camas e beliches.
O recinto já estava cheio de pessoas, só então percebi que tinha ficado para trás enquanto divagava em meus pensamentos. Todo o lugar era dividido em quatro alas: duas para homens e duas para mulheres. Eu e Kathy ficávamos em alas diferentes. O lugar era impregnado por um ranço de peixe velho. Os quartos seguiam o mesmo padrão de odor.
Caminho para minha cama no canto direito do quarto e me sento. Olho para o lençol de cor verde musgo, e fico ali fitando os fios soltos até todos deitarem. Me abaixo e puxo meu pequeno tesouro, minha mochila azul. Não sei por quê, mas eles deixaram minha mochila comigo. Abro e despejo o conteúdo no colchão velho. Observo meus poucos pertences.
Havia um livro de física com capa vermelha, um caderno de capa florida, também tinha um pequeno livro de poesia, e, claro, lá no fundo estava uma pequena Bíblia que mamãe, uma cristã incorrigível, havia me dado no natal três anos antes daquele trágico dia.
Depois de muito perscrutar, e achar um pente, baton rosa e um grampo de cabelo, meus olhos focam na capa branco no fundo da mochila: o diário que papai me deu no meu aniversário de quinze anos.
Todo o meu passado estava nas páginas daquele livro, mas, o mais importante, meu futuro estava ali.

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Odisséia do amor
RomanceQuem mata é o assassino. Quem presencia o crime torna-se refém. Mas todos só procuram uma coisa: o caminho de volta para o amor.