Quarto

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   Em meio à passos atropelados, trupicões e peitadas em árvores, Dom seguida correndo para o fundo da sua propriedade. Os olhos finalmente haviam transbordado, turvando a visão já precária por causa da noite que chegara. Mas não pararia, disso tinha absoluta certeza. Precisava fugir daquilo que tinha acabado de ver, precisava de um lugar em que pudesse ficar sozinho, precisava se sentir seguro novamente. Por isso, corria o mais rápido que podia, ignorando os arranhões que ganhava da vegetação, e os tropeços que levava das pedras, raízes e dos cupinzeiros.

    Nunca alcançara com tamanha rapidez as margens da represa. A represa, por sua vez, também nunca parecera tão sombria, e os buritis em sua encosta jamais tinham projetado aquelas sombras na escuridão; os movimentos de suas folhas, como pêndulos diante da brisa quente da noite, haviam ganhado um terror que Dom não se lembrava de sentir. Mas, no fundo, ele não se lembrava de sentir nada do que estava sentindo; todas aquelas sensações ruins eram novas.

   Chegou na casa de pesca, que também servia de paiol, e se colocou para dentro, fechando a porta com a mesma rapidez que usara para chegar ali. A casinha era toda de madeira, velha e mal feita; suas tábuas, nas paredes e portas, eram cheias de frestas, que deixavam transpassar um pouco da luz do luar. Não havia eletricidade, o que obrigava o garoto a permanecer no escuro.

   Dom, ainda em prantos, sentou-se em um canto, encolhendo os joelhos de encontro ao peito e envolvendo as canelas com os braços. Seu mundo tinha desmoronado. Por algum tempo, pensou que poderia sair ileso da infecção; sua família conseguiu sobreviver quase intacta por quase um ano. Porém, de repente, tudo se desfez. Primeiro, seu pai e sua tia, que tinham os corpos apodrecendo no meio da rodovia, agora sua mãe e, muito provavelmente, seu padrasto. Era como se todos os esforços nunca fossem o bastante, a doença sempre venceria. A natureza realmente era uma assassina e deveria estar se divertindo com suas lágrimas, como uma boa assassina em série faria.

   Estava irritado, mas antes que pudesse soltar o primeiro urro de fúria, um barulho do lado de fora chamou sua atenção. Passos lentos sobre o cascalho que cobria as margens da represa. Estava perto.

   O choro se desfez num piscar de olhos. Nem mesmo a respiração conseguiu resistir ao momento de apreensão; Dom travou-a, disposto a ouvir o que quer que estivesse ao redor da casa de pesca. Mas a única coisa audível era o silêncio.

   Dom respirou pela boca, enquanto tentava enxergar  algo  pelas frestas na madeira, contudo, a luz da  lua parecia escolher o que queria iluminar, e não estava disposta a mostrar para o menino quem era a sua companhia.

   Arrependeu-se de ter corrido como um louco.

   — Seu Pietro…? — perguntou, encontrando uma coragem para falar que não sabia que guardava.

   Mas a resposta foi silêncio e mais silêncio… Um silêncio anormal, como se o mundo todo estivesse parado; como se toda a natureza estivesse observando aquele teatro.

   E, então, uma batida na porta o assustou, fazendo com que soltasse um grito. Porém, o grito só aumentou a força de vontade do ser que estava do outro lado. Uma batida mais forte. E outra. Mais outra. Cada vez  com mais força, abalando mais a estrutura de madeira. Não demorou muito para que ouvisse o barulho estridente característico, nem para que visse, pelas aberturas nas tábuas, o brilho azul nos olhos do ser.

   O infectado se afastou, procurando outra forma de entrar. Ao perceber que não havia, voltou às batidas com o corpo. Fortes demais, a madeira começava a ceder, abrindo cada vez mais as frestas, despregando os pregos, soltando lascas. O bicho se afastou mais uma vez, para dar de encontro a porta de forma definitiva. A madeira abriu e o infectado caiu de quatro, aos pés do menino, que gritou com todas as forças que tinha.

Azul Que Cobre O AsfaltoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora