EPISÓDIO V - Fugitivo

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Léo tragou o cigarro, segurando a fumaça por mais um segundo do que devia na boca, enquanto observava o mico pular de um galho para outro, enroscar-se com o rabo e pendurar-se de cabeça para baixo. Os olhos dos dois se encontraram e Léo quase sorriu, enquanto o sagui piscava e se impulsionava para frente para tentar pegar a banana da sua mão.

— Espertinho – soltou a fumaça para o lado oposto, estendendo a mão. O mico pulou em seu ombro e desceu pela sua manga comprida do braço, comendo a fruta.

Léo voltou a olhar pro topo da árvore. Aquele era seu lugar preferido do colégio, longe o suficiente das fofocas e de todos os olhares, onde sinal de internet não funcionava e não recebia nenhuma mensagem de fã viúvo perguntando quando a banda retornaria. Por isso, sempre que possível, se refugiava ali, como em todos os intervalos mais longos e, principalmente, na hora do almoço.

Nem em pesadelo Léo enfrentaria o refeitório depois de tudo.

Os passarinhos piavam, voando de um lado para outro, e Léo sentou-se na pedra. O sagui terminou de comer a banana e olhou de novo para o dono de sua comida.

— Tá me achando com cara de dono de restaurante, é?

O sagui subiu pelo seu braço de novo, fincando as garras em seu ombro e tentando tirar o cigarro da sua boca. Léo afastou a mão e o animal pulou no seu colo, esticando a pata outra vez.

— Acho que ele está tentando parar seu vício – a voz rouca disse.

Léo girou o rosto e arqueou a sobrancelha para a garota nova, abraçando a si mesma. O sol estava batendo bem atrás dela e ela ficava bem bonita, com aquele queixo erguido que disfarçava, mas ainda deixava transparecer, a insegurança do primeiro dia de uma aluna entrando depois que o ano letivo começara.

— Eu posso ficar aqui? – Analua perguntou.

— É um lugar público.

— Ah – soltou o ar e virou o rosto para outro lado. – Obrigada.

Léo deu um sorriso e esticou o braço, para o sagui correr até a ponta do dedo. Quando chegou lá, o animal pulou direto para a cabeça da menina. Ana Luísa levou um susto, quase pulando, então riu e inclinou a cabeça para que o bicho descesse para o ombro.

— Shakespeare – Léo falou.

— Oi?

— O nome dele é Shakespeare.

— Por quê?

— Ele é uma ótima caveira para "ser ou não ser, eis a questão".

Ana Luísa riu. Léo piscou para ela e tragou o cigarro de novo. Era bom ouvir o som sem culpa e verdadeiro de uma risada. Ultimamente todas as pessoas pareciam não saber como agir na sua presença, como se qualquer emoção mais forte pudesse tirá-lo do equilíbrio que todo mundo achava que Léo era o único a ter, desde tudo.

          

Era bom ouvir aquele barulho. Era bom ouvir o som de quem ainda estava vivo.

— Você quer? – estendeu o cigarro para ela.

— Eu não fumo – a garota negou, fazendo carinho no Shakespeare.

Os dois ficaram em silêncio por um tempo. O sagui saiu do colo dela para ir ao de Léo e voltou para o dela, mais de uma vez, e o cigarro estava quase acabando quando o silêncio começou a incomodar.

Léo apagou o filtro na rocha e enfiou os restos no bolso da calça, antes que Shakespeare pegasse.

— De quem você fugiu? – perguntou.

— De todos, eu acho. – A garota deu de ombros. – Eles me olham como se eu...

— Estivesse roubando o lugar de uma morta? – Léo completou.

Ana Luísa levou outro susto e encarou o garoto, com os olhos arregalados.

Ele deu um quase sorriso.

— Você entrou aqui pelo quê?

— Eu canto.

— Sozinha?

— Na maior parte das vezes. Mas eu abri os shows do Colours Duo nos últimos meses, na Europa. Não sei se você conhece.

Léo assentiu, encarando o céu.

— Então você não faz ideia do que é ter uma banda. Você é fã? – Voltou a olhá-la – De Saturno?

— Eu escuto as músicas. Mas minha vida foi uma maluquice nos últimos meses, então não acompanhei muito.

— Sorte a sua.

Ana Luísa não respondeu, mas Léo não se incomodou.

Não era uma questão de não saber o que dizer por parte da novata. Era só a falta de dizer para um quase desconhecido. Era a melhor reação que Léo tinha em meses e estaria sendo hipócrita se dissesse que não gostava daquilo

— E você? – ela perguntou, depois de um tempo, sentando-se ao seu lado. Léo a encarou. – Tá fugindo de quê?

Léo fez um barulho com a garganta bem próximo a uma bufada, embora não fosse, já que não era com força ou com raiva e descontentamento. Era que ninguém havia perguntado isso antes e era estranho que ninguém tivesse perguntado. Era estranho, na verdade, o quanto todos pareciam ter medo de falar qualquer coisa com a sua pessoa, como se fosse o mais descontrolado do grupo.

Ou, talvez, como se ninguém suportasse ouvir as verdades que Léo tinha a dizer.

— De mim – confessou.

Os dois se olharam e Léo piscou.

— Vamos, você demorou tempo demais para não perguntar o que aconteceu. Eu sei que você quer. É o que todos querem.

— Eu sei o que aconteceu. Carol morreu.

— E você não vai perguntar o que aconteceu antes?

— O que aconteceu antes não muda o fato de que ela morreu, não é? – Ela não piscou para responder.

Léo deu o primeiro sorriso verdadeiro em dias.

— Acho que ter te ajudado mais cedo foi minha mais sábia decisão.

Ana Luíza devolveu o sorriso e olhou para frente.

— Você não tem a mínima curiosidade?

— Sempre achei que quem tem curiosidade por morte é alguém que precisa ser estudado. É... mórbido – deu de ombros. – Eu não sou a garota que pula do lugar para ver o acidente do outro lado em que estou sentada no ônibus, então não sou a pessoa que vai ficar perguntando o que aconteceu com Carol. A gente já sabe o suficiente. O resto é história.

— Talvez esse seja o problema, Analua – Léo pegou outro cigarro de dentro do bolso e acendeu. Tragou antes de completar: – A história só é contada por quem sobreviveu.

— Bom, acho que você tem razão. Mas nenhum de vocês parecem sobreviventes, não é? Talvez Carol esteja mais viva que vocês, que ficaram.

— Provavelmente. Carol estava sempre viva – fez uma careta.

E essa era a ironia da coisa toda, afinal. Essa era a crueldade: foi a garota mais feliz da banda, aquela que nunca reclamava sobre a vida ou o que quer que seja, a que deu nome ao sonho dos cinco, que partiu.

Léo até concordava com Analua: a partida de Carol a manteve inteira, os cacos que sobraram nunca foram dela, mas das coisas que todos eles tinham dito e não perdoaram, ouviram e não engoliram, silenciaram e não esqueceram. Eram os cacos da partida inteira de Caroline que implodiram o grupo e era por isso que Léo se recusava a ficar mal pela morte dela.

Porque, afinal, Carol nunca mereceu.

Ela já tinha coisa de mais da vida para que Léo lhe desse mais uma, mesmo depois de morta.

— "As feridas causadas por uma amizade – recitou Analua, elevando Shakespeare ao seu olhar – são as mais profundas e dolorosas".

— Talvez você esteja certa – Léo sorriu. – Mas nunca se esqueça de que há sempre algo de podre nos bastidores de uma fama.

Ana Luísa piscou e soltou Shakespeare que, correndo, subiu a árvore até o topo da copa. Ambos ficaram olhando por um tempo, e, enquanto Léo tragava mais um cigarro de menta, Analua assobiava uma música tão bonita que quase, quase mesmo, se Léo permitisse, começaria a doer.

Mas essa era a diferença de Léo para todos os outros: ele não deixava. E, portanto, a dor nunca o alcançaria, enquanto pudesse impedir.

 E, portanto, a dor nunca o alcançaria, enquanto pudesse impedir

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Shakespeare está sempre vivo.

A interação de Léo e Analua tem mais coisa do que foi explícita e Léo é assim mesmo: um personagem fugitivo. Se Bê é o mentiroso compulsivo, Léo é o que tem sempre muitas coisas a dizer, e mais coisas ainda nunca ditas, para não se comprometer.

Já escolheram o lado de vocês?

O QUE SERÁ QUE ACONTECEU COM A BANDA PÓS MORTE DE CAROL, THAT'S THE QUESTION

Tenho uma notícia: o próximo capítulo é uma página de diário da que se foi. PREVEJO TRETAS.

Aliás, tudo o que essa história prevê é isto mesmo: tretas.

felicis, sempre

& beijos cafeinados.

Mil Voltas de SaturnoOnde histórias criam vida. Descubra agora