Capítulo 1

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— "Tiutonio", você tem certeza que isso vai dar certo?

— Mas é claro que eu tenho, menino! – respondeu o homem com uma pontada de indignação e ajeitando dois cartõezinhos dentre os demais que estavam na cesta de vime.

— Não que eu não confie no senhor, não é isso. Mas o senhor também sabe que eu quero muito as minhas...

— Tá, tá...isso eu já sei, garoto. Se você prestou atenção em tudo o que eu disse e fizer do jeito que combinamos, não tem como dar errado.

O homem olhava para o menino com um ar severo ao ajeitar os óculos redondos sobre o nariz aquilino.

— Não sei, não. – retrucou o garoto, cavucando a terra com a ponta do pé e olhando de soslaio para o seu interlocutor. — Tem gente que não anda muito feliz com os seus "serviços", não. Ouvi dizer que tem uns que até...

— Escuta, aqui, ô, garoto – começou o homem em um tom irritado e levando as mãos à cintura. As maçãs do rosto de tez muito clara agora estavam vermelhas como as que boiavam na tina poucos metros à frente. — você já ouviu dizer que uma andorinha não faz verão? Aliás, você, mais do que ninguém deveria saber que quando um não quer, dois não brigam!

— Calma, "Tiutonio"! Você está muito nervoso e isso não combina nada com pessoas como você! – pediu o garoto, erguendo as mãos no ar como que tentando apaziguar o outro.

O homem encarou o garoto, vermelho como um tomate. Passou as mãos pelo rosto e olhou para cima, no que pareceu uma prece silenciosa, antes de voltar a considerar a figurinha à sua frente. Era um menino não muito alto, um pouco acima do peso e que agora parecia genuinamente incomodado. Ora remexia nos punhos da camisa xadrez; ora, na gola que puxava sem dó. No momento seguinte, era a calça escura com remendos coloridos que lhe agarrava nas pernas rechonchudas no melhor estilo "pula brejo".

— O que foi? Esse negócio está me pinicando! – reclamou o garoto assim que percebeu o peso do olhar do mais velho. — Não estou acostumado com essas roupas. Bem diferente das suas... – e apontou para a batina do outro que apenas repuxou a boca antes de tomar a cesta minuciosamente arranjada.

Com um último suspiro e uma olhada para cima, o homem pegou o menino pelo braço enquanto caminhavam pela lateral pouco iluminada da igreja matriz até alcançarem a imensa praça repleta de pessoas, luzes, sons e cheiros.

Aquela era uma cidade pequena, como tantas outras do nosso imenso Brasil, daquelas onde todos os habitantes se conhecem – ou quase isso. Lugar de pessoas humildes e muito religiosas, onde as festas juninas eram aguardadas ansiosamente. Aqueles eventos reuniam a comunidade toda na praça em frente à igreja da Matriz onde barracas que arrecadavam fundos para as obras assistenciais da paróquia eram instaladas por toda sua extensão. Milho cozido, canjica, pé-de-moleque, enfim, uma infinidade de pratos típicos era oferecida aos frequentadores, além de quentão e vinho quente. Um grupo de música composto por sanfona, triângulo, clarinete e violão tocava no coreto alegrando o ambiente. Também havia a barraca da pescaria, da bola na lata, da argola e...claro, a do beijo. A cadeia também estava ali, em canto próximo à lateral da igreja e fazia a alegria de crianças e jovens que gostavam de pregar peças uns nos outros.

Enquanto famílias e os mais velhos concentravam-se a um lado, em bancos e mesas de madeira improvisadas, os jovens se espalhavam por todo o lugar, divididos entre as barracas com brincadeiras, a região do coreto, a cadeia e uma fila interminável...mas não na barraca do beijo! A fila, na verdade, estava na porta da igreja e ia longe, formada por mulheres de todas as idades. Alguém menos desavisado pensaria se tratar de alguma celebridade, embora, naquele tempo ainda não fosse muito comum esse tipo de "persona". Na verdade, aquele ano era especial: um sábado 12 de junho, conhecido como "dia dos namorados" seguido por um domingo 13, dia do padroeiro da cidade, Santo Antônio. E qual a relação daqueles eventos com a fila? Bem, havia uma tradição na cidade de se distribuir o "bolo de Santo Antonio". Como muitas tradições brasileiras, não se sabia quando e como começara, mas ainda assim, era capaz de arrastar uma multidão feminina até a porta da igreja naquela data. Fizesse sol ou chuva, lá estavam as mulheres aguardando sua vez de levar para casa um pratinho de "esperança". Fosse pelo sabor do quitute preparado com tanto esmero pelas voluntárias ou por acreditar que ele realmente pudesse atrair um marido, a cozinha da igreja trabalhava a todo vapor na semana que antecedia as comemorações.

Quem tem padrinho não morre sozinhoWhere stories live. Discover now