"Sei lá onde vai dar
O outro lado do mar, eu vou
Pra dizer ê, ê
É, eu tô quase lá, quase parte do mar"*
*
A chuva fina na janela, o frio do ar condicionado do ônibus, a mão tremendo e suando, com o risco eminente de borrar toda a tinta da passagem que estava prestes a ser conferida. No cantinho já úmido, mole e semi borrado eu via a descrição que fazia passar um filme na minha cabeça: Rio de Janeiro. Aquele não era meu destino final, claro. Mas sendo o meio do meu sonho, era um cenário importante dessa história. E que cenário.
As notas fiscais com minha fuga belo-horizontina e meu destino Rio ativaram na memória todo o suor que de fato banhava aquela história. A cada letrinha, que eu relia pela milésima vez, me transportava para os dias vinte e quatro e trinta e um de dezembro dos últimos três anos que eu havia trabalhado até às oito da noite para estar ali agora. Por que lembrar de três ou quatro feriados que trabalhei nos últimos três anos se foram incontáveis domingos, sábados e dias de semana? Eu sentia que muito da minha vida foi sacrificado por aquele momento. E lá estava eu sentado naquele ônibus sem a menor vontade de desistir, indo ao paraíso intermediário atrás dos meus certificados de hospedagem, bilhete de retorno ao Brasil, extratos bancários com o suor dos últimos três anos e o terrível visto para entrar na Europa.
Como alguém que teve a infelicidade de nascer sob o sol em peixes, sonhos sempre foram minha dimensão favorita. Sonhei em entrar naquele ônibus sozinho, saindo do escombro dos olhares da família pela primeira vez, e, enquanto me acomodava, perceber que o amor da minha vida entraria, procuraria sua poltrona, descobriria que era ao lado da minha e o alto das vinte e duas horas não seria empecilho para uma longa conversa durante a madrugada. Nos meus sonhos, tudo já estava pronto. Ele entraria, congelaria o olhar no meu, descobriria sua poltrona ao lado da minha, ficaríamos amigos e dali eu tiraria a história de amor que eu sempre quis contar numa mesa de buteco. Ainda não inventaram nada pra imprimir sonhos ou fazê-los virar realidade.
Viajei as longas sete ou oito horas ao lado de um senhor que não parou de conversar com a amiga que estava do outro lado do ônibus. Titubiei por três vezes em oferecer para trocar de lugar só pra não ter que ouvi-los conversando em poltronas separadas de Bh ao Rio. A preguiça venceu e eu só pensava que, novamente, sonhei alto demais.
A estrada deixava minha cidade natal para trás. O caminho era pro Rio, mas à frente eu via Londres, Paris, Madri, Milão, Roma, Veneza. Minha dimensão dos sonhos era realista o suficiente para me vislumbrar trabalhando num balcão de um pub, rolando enormes canecas de chopp para os clientes, vendendo as mais lindas garrafas de cerveja artesanal ou vinho e me apaixonando por um vocalista inglês cantando Coldplay ou Lorde. Me via dormindo num cubículo do último andar próximo às telhas velhas marrons e nada poderia me fazer mais feliz que aquilo. Me imaginar num casaco marrom do meu avô andando pelas vielas de casas de tijolinho aparente nunca havia sido tão reconfortante. Meus três anos de pés inchados vendendo camisas baratas valeriam a pena. Meus três anos almoçando pacote de biscoito, comendo em podrão sem me permitir uma casquinha de dois reais finalmente se converteriam no meu visto e na minha permissão para trabalhar na Europa.
A rodoviária me recebia numa manhã mais cinza que mármore. Me atrapalhei com as malas, a barriga roncava pedindo um pão de queijo, as lágrimas tímidas escorriam e o medo de não conseguir chegar ao hostel compunham o cenário mais catastrófico e lindo que o destino poderia desenhar. O preço do táxi era quase metade da passagem de Bh pro Rio, o que me fez criar coragem para andar pelas ruas perguntando onde era o famoso bairro das Laranjeiras. De braço dado com uma senhora de quarenta e poucos anos senti o primeiro calor do Rio, humano e na pele pelos 40° às oito da manhã. Conduzido até o hostel, ouvi o Nando cantando como se fosse ao pé do meu ouvido, só pra mim.
* Mallu Magalhães - Versinho de Número um