QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM

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Atravessaram duas cidades, cruzando caminhos, desembocando em favelas. Suaram por entre as pernas, desatinando muitas vezes o motivo de tamanho esforço. Lúcia arrancou da bolsa um leque antigo: no Norte era bem pior, mas tinha o vento; tinha o vento e a ausência de tudo; a ausência de tudo, inclusive da ambição. Nuvens se afastavam do sol e as meninas lamentavam passeio tão longo e sem nada. Em meio ao caminho fendido, Lúcia elaborava um comportamento, uma atitude diante de todos. E ia chover, apesar do sol. O almoço. As meninas. Febre. Andar muito. Os pés se faziam maiores naquela travessia desmedida - três vidas para chegar de cá pra lá, disse uma das meninas. Conforme se aproximavam do destino, notava-se que a civilização já calçava os sapatos: postes de luz elétrica, asfalto, casas geminadas. Lúcia sentia o bem-estar e a amargura numa mesma goma grossa que lhe surgia na boca. Cuspiu. As meninas, de boca seca e ao modo da mãe, cuspiram também. O almoço. Uma atitude diante de todos. Chegaram.

Foram recebidas com a mesa posta, almoço de domingo. Traga o bebê, disse Alcides querendo exibir a novíssima filha, chamem Madalena, diga que Lúcia chegou! Hoje na missa o padre disse que é o quinto domingo do tempo comum, momento propício para batizar criança, celebrar... Bem, podemos celebrar, mas sem madrinha não tem batismo. Você aceita, Lúcia?

Silêncio. Um sorriso aos poucos se montando, mecânico e ausente. Lúcia, junto de suas duas meninas, figurava no canto da sala, olhando tudo, encontrando luxo onde só havia modéstia. Numa atitude diante de todos disse que aceitava, embora o sorriso não tivesse conquistado o viço que desejara. Trouxeram-lhe Rosa coberta numa mantinha verde. Oitava filha!, Alcides orgulhava-se, veja a carinha, Lúcia, veja como lembra a Madalena. Também se parece comigo, poderia ser minha, pensou Lúcia.

Dentre os filhos menores e os mais crescidos, do fundo do corredor, surgiu Madalena de braços abertos. Minha irmã, ela suspirou durante o abraço, você está bem? Está pálida. Lúcia disse coisas como graças a Deus, saúde, como está bonita, mas só conseguia sentir o roçar do vestido de seda em sua pele. Ao mesmo tempo, repelia-se, envergonhada da própria chita que usava. Era o tipo de pano que ambas usavam no Norte. Madalena chegou ao Sudeste e já se cobriu de outras fazendas, tramas e texturas. Lúcia, cujo Sudeste é um êxodo interminável, não encontrara outro tecido que a cobrisse.

Alcides não se furtava sorrisos cordiais, piadas espirituosas. Sabia de seu charme de homem forte. Madalena dava os filhos por libertos, alguns correndo pelo quintal, outros sentados no muro, fumando. Lúcia não cansava de observar tudo, mantendo as filhas ao lado como que para protegê-la de algo feroz que pudesse avançar a qualquer momento. O almoço pousou em seu estômago e Lúcia não queria que ele se dissolvesse. Fizera naquela tarde muitas refeições, todas as que ela julgava roubadas. Queria que as carnes e molhos e folhas prosperassem em sua barriga para sempre. Assim como queria criar raízes naquele quintal, invadir e habitar a casa, fazendo sombra aos seus oito filhos, sendo seiva ao homem que sempre quis.

O pai volta hoje?, perguntou uma das meninas, interrompendo seu delírio. Volta. Lúcia sabia que não voltaria. Vida de carreteiro é esse volta-não-volta, comentou Alcides fazendo um gracejo com as mãos que encantou as meninas. Volta-não-volta. Não volta, Lúcia tremeu.

Já no fim na tarde, armou-se uma lona escura sobre o céu. Trovões murmuravam nas profundezas daquele breu. Um monstro!, apontou uma criança para o firmamento. A luz pifou.

Às pressas, arranjaram velas e espalharam por todo canto. Os filhos mais velhos propuseram uma roda para contarem histórias de assombração. Madalena passou um café e sugeriu que os três adultos da casa fossem para a mesa de jantar, a fim de evitar censura à diversão dos jovens.

_Histórias são só histórias, insistiu Madalena.

_Mas as minhas meninas não estão acostumadas, vão tomar café comigo, eu faço questão

_Deixa disso. Vocês não querem, meninas? Então! Que bobagem, Lúcia, eu que faço questão.

Sem a salvaguarda das filhas e com o estômago já gelado, o lamento rouco de um bicho na amplidão e o algo feroz que ela temia se precipitava. Naquele instante, não sabia mais que atitude tomar diante de todos. Sentou-se. À luz imprecisa da vela, o café escorria da chaleira encorpado feito sangue. Não era mais possível fugir da aniquilação. Tomou o primeiro gole. 

A irmã mais novaWhere stories live. Discover now