A febre do delírio

23 5 1
                                    

Clara ardia em febre e parecia ter saído de um transe. Os cabelos encharcados de suor criavam uma aura de partículas minúsculas no travesseiro. Não parava de pensar no acontecido da noite anterior.

O dia estava quente, mas nada que justificasse toda aquela insolação matutina.

Já havia comprado o pendurador de chaves, já havia trocado as fechaduras da porta, já havia trancado por dentro, olhado para fora, investigado suas gavetas à procura do que perdeu. Nada.

Somente a febre, o rosto daquele estranho em faíscas, aquela menina sem rosto que não sabia de nada do que havia se passado há mil séculos dali e ainda se lembrava completamente esquecida em febre quente de quase 40 graus.

Precisava dar um jeito nela, pensou, mas sem saber como faria, tomou um antitérmico e deitou-se novamente. O domingo que apenas começava terminaria longe. Ainda bem que já havia acabado as provas finais- pensou.

A garganta seca, fechada pelo que não disse, implorava por um pouco de saliva menos densa. O ronco insistente do seu estômago lembrou-lhe que ainda estava viva. Na geladeira havia apenas couve e abacaxi para um único suco verde.

Pensou em pedir alguma comida, mas dessa vez o seu estômago rejeitou o mundo numa ânsia de expulsar o inconveniente embrulho que tomou conta de seu corpo.

O coração pequeno escondido entre o peito acelerado não entendia o que estava se passando e enquanto a sua mente tentava se recordar do delírio tudo em volta dela rodava.

O corpo de Clara, agora ainda mais frágil do que antes, denunciava os ossos que estalavam a cada movimento que fazia em sua cama encharcada.

Não era nenhum pedaço de seu corpo o que a incomodava, nem o suor, nem a ânsia, nem o vômito insistente.

Desde o dia em que se encontraram pela segunda vez, nunca mais o havia visto ou falado.

Passou dias tentando juntar as peças do quebra cabeça que inventara, mas elas não se encaixavam de jeito nenhum.

Pareciam tão perfeitas!

Ontem tudo fez sentido. - pensou

O telefone que não tocou fazendo-a se sentir idiota, a mensagem que nunca chegou.

Teria sido um delírio? - indagava-se enquanto seus olhos vagos fechavam-se à rememorar a cena do acontecido. Mordia os lábios entre um suspiro aflito e outro e depois soltava o ar perdido que guardava as ilusões. Elas voavam.

De repente, caída em cólera, adormeceu sob os lençóis molhados de pensamentos e aflições sujos pelo pecado que nem sequer sabia ter cometido.

Ao longe, o som de um pássaro anunciava o fim do dia sob as luzes baixas do sol, enquanto a chuva fina começava a cair na tentativa de aliviar a terra densa, dentro.

Talvez tivesse sonhado e em sonho não havia uma mulher sem rosto. Havia o instante.

Envergonhada pela sua ingenuidade de mulher que sonha, não quis perguntar aos seus amigos sobre o estranho.

Deixou que o tempo lhe trouxesse respostas, deixou que aquele sentimento se transformasse em um mar de superfícies impenetráveis. Ninguém comentou. Ninguém notou o que havia ocorrido há mil séculos.

Nem eles.

Passava os dias se consumindo em esquecimento: dela.

Enfim, ele tinha uma namorada!

Todo caco tem vidaWhere stories live. Discover now