Um estalo. Willem acordou abruptamente – algo estava errado. Era madrugada de sua quarta noite no abrigo, a tempestade continuava, por isso os amigos não tinham seguido viagem. O máximo que tinham feito era caçar. Vazs tinha abatido um pequeno veado durante uma ronda no dia anterior. Ainda havia um pedaço da carne salgada sobre algumas pedras que ladeavam a fogueira, sendo guardado para o próximo dia.
Outro estalo. Definitivamente havia algo lá fora. Ou alguém. Pensou Willem, tremendo com a possibilidade. Ele tentou olhar para fora da saliência, mas a escuridão lá fora era esmagadora. A fogueira que iluminava o interior da saliência de nada ajudava na visualização do que estava lá fora. Pelo contrário, com seus olhos acostumados com a luz seria ainda mais difícil ainda ver o quê permeava nas sombras.
Willem levantou-se com pressa, armou-se de suas facas e acordou Gunther – o companheiro mais próximo.
"Têm algo lá fora." Disse ele quando o amigo por fim despertou. "Ouvi galhos se partindo."
O amigo ficou rapidamente alerta e passou a prestar a atenção no que estava lá fora. Mas os estalos pararam, e o único som a ser ouvido era o constante cair da chuva. Willem acordou os outros companheiros – mais por precaução do que por ameaça confirmada. Ele pensava que poderia ser um grupo de perseguidores. Era melhor perder uma noite de sono por conta de um alarme falso do que dormir para sempre por falta de aviso.
Fora da saliência o mundo era quase imóvel. As únicas coisas movendo-se eram o vento, a chuva e as copas das árvores. Nada mais. Os cavalos estavam presos sobre uma árvore próxima a saliência, estavam inquietos, mas também não se moviam.
O vento então mudou, trazendo lufadas da gelada brisa primaveril de encontro com o rosto de Willem. O frio o deixou ainda mais alerta. Mas o vento trouxe consigo outra coisa – a confirmação de que não estavam sozinhos. Ela se deu na forma de um relincho. Não de cavalos de perseguidores. Mas de seus próprios. Logo os outros cavalos começaram a relinchar. Eles estão farejando algo, deu-se conta Willem, e estão nervosos.
Um estalo chamou a atenção de Willem. Seguido de outro. Os cavalos continuavam a relinchar. Agora o barulho de galhos quebrando e passos seguiam rítmicos, pesados e cada vez mais altos. O que quer que fosse que estivesse vindo em sua direção era rápido. E também deveria ser grande. Eles ficaram a postos esperando por seu inimigo. Não sabiam o que vinha de encontro a eles, mas tinham certeza de uma coisa: não era humano.
O bramido reverberou como um trovão pela escuridão do Coração Verde. O cavalo de Vazs arrebentou a corda que o prendia e fugiu parecendo um tornado pela madrugada. Willem rapidamente tentou identificar aonde estava o urso, mas o escuro o impedia de precisar a posição do animal. Seu coração parecia estar tentando abrir uma passagem para fora do seu peito, sua respiração era rápida, e seu estado de alerta era total.
Os companheiros, que pareciam estar no mesmo estado, já empunhavam armas. Vazs e Gunther tinham seus arcos em mão, com as cordas presas e uma flecha em cada. Mazzo, que já brandia a espada, pegou seu escudo – acessório que Willem raramente o vira usar em combate, pois o amigo preferia o manejo da espada com as duas mãos – e se postou na borda da saliência.
Um novo rugido denunciou a posição do animal. E também suas intenções.
"Os cavalos!" Gritou Vazs. "Protejam os cavalos!"
Eles tentaram agir rapidamente, mas o urso foi mais veloz e abateu-se sobre o cavalo de Mazzo antes que eles pudessem fazer qualquer coisa. A presa soltou um relincho de dor e desespero quando o predador massivo a derrubou e abriu sua garganta. No mesmo momento o também desesperado cavalo de Willem conseguiu arrebentar a sua corda e fugir relinchando para escuridão.
Só então eles puderam ver o tamanho da fera. Era assustador. Com mais de um metro de altura sobre as quatro patas e com certeza com mais de dois metros de comprimento. Um pelo marron desgrenhado que se estendia pelo imenso corpo. E dentes enormes que rasgavam a carne do animal, fazendo verter um rio de sangue em meio ao chão da floresta. Aquela era uma péssima época para encontrar ursos. Muitos deles haviam acordado recentemente da hibernação e estavam famintos após os meses de inverno sem comida.
Um par de flechas voou em direção ao urso, mas só uma acertou o alvo. Atingido na altura das costas o animal pareceu finalmente se importar com aqueles que atrapalhavam seu jantar. Pelos nove Deuses, pensou Willem ao ver o animal se levantar em mais de três metros de altura, rugir e partir para cima deles com uma fúria selvagem. Mais uma vez eles teriam de lutar por sua sobrevivência naquele lugar hostil.
Foi a vez do predador massivo atacar. E apesar do corpanzil de meia tonelada, Willem viu o urso vencer rapidamente a distancia que os mantinham separados. Os arqueiros até conseguiram mandar mais um par de flechas de maneira quase sincronizada em direção a besta. Mas não a parou, e em poucos segundos a fera já estava em cima deles.
Mazzo foi quem recebera a fúria do animal. Intercedendo no caminho do urso antes que ele pudesse se abater sobre os arqueiros, e usando o escudo para se proteger das garras e dentes da fera. Enquanto isso Vazs e Gunther procuravam um novo lugar de onde pudessem disparar seus arcos.
Willem estava imóvel. Em choque. Vendo aquele monstro imenso postar-se de pé e carregar as patas pesadas e cheias de garras contra o escudo arrendado do amigo. Fazendo lascas de madeira voar para todos os lados, e Mazzo ser arremessado um par de metros para dentro da saliência.
Willem continuava imóvel. Não sabia como lutar contra aquilo. Ele era um lutador das sombras, suas armas eram usar o silêncio e as vantagens do terreno contra seus inimigos para surpreendê-los. Mas ali ele era a caça e não caçador. A surpresa estava contra ele. Willem não tinha uma lança, nem um arco. Ele só tinha suas facas de arremesso e sua adaga – que não lhe pareciam o suficiente para parar o ataque do animal enfurecido que estava destruindo tudo em seu abrigo. Só conseguiu sair de seu transe quando viu o urso partir novamente para cima de Mazzo, que estava atordoado no chão da saliência.
Vendo o amigo em perigo, Willem agiu em puro extinto, sem realmente pensar no que fazer. Só em parar a fera. Quando deu-se por conta havia uma faca voando de suas mãos em direção ao urso, descrevendo círculos no ar num eixo perfeito, visando a lateral marron e peluda enquanto o animal se preparava para atacar Mazzo. A faca acertou seu alvo, penetrando fundo na carne, e a fera soltou um bramido de dor e raiva que fez gelar o sangue de Willem.
A distração funcionara e Mazzo já não era mais o alvo do urso –era Willem. E quando o monstro partiu para cima dele, Willem não precisou nem de meio segundo para decidir o que fazer. Sabia que não precisava mais atacar. Precisava fugir. E assim o fez, correndo tão rápido quanto pôde para fora da saliência, indo buscar no terreno ao redor algum ponto que permitisse escapar da fúria sanguinária daquele animal enraivecido. Ao sair do espaço fechado ele partiu em direção a um grande tronco caído que jazia sobre o chão da floresta a algumas dezenas de metros longe.
Willem tentou localizar os amigos arqueiros enquanto corria sobre o chão lamacento e recebia a chuva gelada que caia constantemente. Vazs e Gunther ainda não estavam longe o suficiente para poderem disparar em segurança de fora da saliência, e naquele momento não podiam parar nem atrasar o monstro que o perseguia. Ele estava sozinho. Não conseguia ver o urso, mas nem precisava. Usando os ouvidos ele podia ouvir nitidamente o bramir do animal em meio a sua respiração pesada e também os passos que ressoavam cada vez mais próximos.