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Cinco e quarenta da manhã, o velho ranzinza acordava aos gritos quem dormia alí na porta do que aparentava ser sua loja.

Acordaram os que alí pernoitaram e, automaticamente, se foram à enorme praça situada no coração da cidade. O que tornava aquela praça singular era a fonte d'água, que tanto servia para lavar o rosto, algumas peças íntimas, bem como também para beber ainda que o gosto fosse "puro cloro".

Nazaré acordava sempre irritada. Assim eram todas as manhãs, mas mais pela falta do "uso" do que pela falta de forças para um outro dia viva. Já o marido, Jerônimo, era o pêndulo da balança da família. Era ele que freiava a mulher que, por vezes, tinha ataques de histéria. João Paulo era a junção exótica de ambos. Reprimido, só falava quando solicitado, mas quando era injustiçado, por vezes, virava um leão faminto pelo uso de drogas e pela justa divisão da mesma.

Nazaré era baixa, morena, de magreza anoréxica e rosto cheio de linhas de expressão. Tinha verrugas tanto no rosto como pelo corpo inteiro. Os cabelos secos e sujos já não escondiam a calvície da mulher de apenas 45 anos, que mais parecia ter 60 anos.

O marido, Jerônimo, era alto, de pele branca avermelhada pelo sol. Seu rosto mais parecia o próprio retrato do cansaço e do desgosto. Macérrimo, de longas mãos e dedos com unhas revestidas de sujeira, tinha um andar manco, por conta de um acidente que muito jovem o aposentou. Sempre coçava exasperadamente a cabeça cheia de piolhos. Tinha o aspecto bem mais velho que a própria idade: tinha 43 anos, porém aparentava uns 60 anos.

Diferentemente, João Paulo só se igualava a eles pela extrema magreza. Na verdade, era um jovem bonito, de apenas 21 anos. Era moreno, de olhos castanhos, cabelos longos e negros igualmente cheio de piolhos feito a mãe e o pai. De estarura baixa como Nazaré, tinha ainda a infelicidade de ter seus amarelados dentes banhados de tártaro. Ainda que feio, era uma vantagem em face dos pais que ao sorrirem, das raras vezes que o faziam, apenas mostravam o espaço vazio de onde outrora havia uma arcada dentária e uma gengiva roxa sofrida pelo o "uso" e pelo cigarro.

Era domingo, o centro tranquilo comparava-se a um deserto devido os comércios e instituições públicas fechadas.

A família saiu junta e perscrutou, com precisão cirúrgica, cada saco de lixo como possível alí tivesse algum tesouro.

Quem sabe, os três teriam a sorte grande, como na semana passada que, por acaso, entre papéis de contas já pagas, havia uma pequena bolsa e nela uma velha nota de cem reais, tão antiga quanto a própria fome da família.

Nazaré, com um olhar preciso e por intuição, já tinha a sorte para se deparar com tais achados no lixo, porém naquele domingo parecia ser igual aos outros.

Quando o carrinho já estava cheio de garrafas "pet", resolveram, de imediato, vendê-las na reciclagem. Aquela montanha de garrafas lhes deu um pouco mais de quinze reais.

Aquele valor logo virou fumaça e, ainda outra vez, estavam sem perspectivas de possível outra forma de uso. A única possível opção era vagar e vagar feito judeus errantes pelo centro da cidade.

Eram quase cinco da tarde e, até aquele instante, nada haviam encontrado. A família, todavia, não perdia a fé e Nazaré era a mais otimista.

Exaustos voltaram à Praça da Fonte d'água. Estavam desolados e ali saciaram a sede na fonte de água insalubre. Saciados, estacionaram o carrinho de reciclagem e tombaram cansados no chão embaixo de uma árvore, que dava uma fresca e acolhedora sombra.

Calados, os olhos ausentes de sofrimento buscavam, ao menos, uma dose de cachaça para sustentarem-se de pé. Sorrateiramente adormeceram.

Nazaré, Jerônimo e João Paulo dormiram tranquilos e amontoados os corpos uns aos outros por medida de segurança. Haviam os protocolos que seguiam. Um deles era de sempre dormirem colados uns aos outros. Sempre vigiar o carrinho de reciclagem e nunca ser passado pra trás por estranhos. As leis que os regiam eram duras, pois a selva de concreto não perdoa nenhuma infração às suas leis.

João Paulo sonhava com a antiga casa na qual cresceu na infância. Estava a brincar sozinho no quintal enquanto os pais, na cozinha, degladiavam-se pela divisão da droga.

Nazaré nada sonhava, apenas a alma repousava em um espaço negro e distante concedido pelo tempo.

Jerônimo acordara súbito com qualquer barulho suspeito. Parecia um felino. Não acordou a mulher nem o filho. Não era nada demais, porém não voltou a dormir, pois tinha o dever de vigiar o patrimônio da família. Pulou, então, dentro do carrinho vazio e imaginou estar deitado em confortável cama. Logo dormiu outra vez.

Eram oito da noite quando acordaram todos juntos, numa estranha sintonia. Um tumulto os acordou da paz que somente lhes era concebida ao dormir. Uma reportagem de uma emissora de tv fazia a denúncia de que moradores de rua usavam drogas em praças públicas.

Jerônimo e a família logo fugiram, reprimidos, tinham vergonha de aparecer na tv com usando aqueles trapos. A repórter, então, correu em direção à Nazaré que, de pronto, já estava de cara com a câmera a filmá-la. Assustada, a mulher deu um soco na bonita moça que tentava lhe entrevistar.

A família correu e, minutos depois, em algum lugar do centro, param e riram juntos da situação.

- Mas, mãe, a senhora é valente, viu?

Exaltou o filho a mãe. O marido, discretamente, mostrava um ar de riso e preocupação.

- Olhe, hoje é domingo, melhor se aguentar: a gente não pode chamar atenção, vai que a polícia te pega pelo que tu fez.

O homem tinha razão porque minutos depois avistaram uma viatura policial fazer um limpa em todos os moradores de rua quem estavam nas praças.

Nazaré lembrou do "Lar dos Sem Lar". Naquele estabelecimento poderiam dormir, porém alguém teria que dormir junto ao carrinho e preciavam decidir logo, uma vez que a casa fechava às nove da noite. Jerônimo decidiu que dormiria no carrinho e a mulher e o filho iriam para o abrigo.

Hora depois, mãe e filho estavam deitados na casa, alimentados e banhados. Nazaré pediu a Deus que, naquela noite, nenhum mal sucedesse ao marido, que estacionara o carrinho num canteiro em via pública. Ela sabia dos perigos que surgiam aos que têm a rua como lar.

João Paulo adormeceu logo. Enquanto a mulher e o filho dormiam, o marido estava ao relento. Jerônimo, sozinho, tirou do bolso cinco reais, que havia escondindo para usar quando estivesse sozinho. Comprou a droga e fez o uso ali mesmo dentro do carrinho.

Deslocado e drogado dentro do carrinho, imaginou a polícia invadir aquele local e o levar preso. A paranóia durou por poucos minutos e ao findar, quando deu por si, adormeceu. De modo estranho, a família estava, naquele momento, segura de todo mal que poderia lhe suceder naquele noite de domingo infrutífero e cruel.

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