Cabinda, que não me interessa. Luto aqui para que a minha região tenha menos inimigos
concentrados nela e assim possa ser livre.
Mas Sem Medo é um homem. Quando combate, tem o mesmo ódio ao inimigo que eu.
As razões são diferentes, mas os gestos são os mesmos. Por isso o sigo no combate. O mal é
ser um intelectual, é esse o mal: nunca poderá compreender o povo. Os seus filhos ou irmãos
não morreram na guerra. Não, ele não pode compreender.
Ele não dorme.
Gostava de lhe explicar isto. Mas não sei como dizer. E ele não compreenderia.
O quadrante luminoso de Sem Medo indicou finalmente as cinco horas. Bateu no
ombro do Chefe de Operações e apercebeu-se de que ele já estava acordado. Foram
despertando docemente os homens, os quais se levantavam imediatamente.
Dividiram-se em dois grupos de cerca de vinte homens cada: um, comandado por Sem
Medo, que avançaria pelo rio para assaltar a Base, outro, comandado pelo Chefe de Operações,
que deveria dar a volta à Base e apanhar o inimigo por trás, quando este tentasse fugir pela
montanha.
— É preciso que vocês andem mais depressa do que nós – disse Sem Medo.
A noite era escura ainda. Só às seis horas os primeiros luares conseguiriam infiltrar-se
pelas copas das árvores, recriando o verde do Mayombe.
O grupo do Chefe de Operações partiu pela direita, docemente, para fazer um
semicírculo. O plano dará certo se ninguém estiver no rio, pensou Sem Medo. Senão, será
preciso abrir fogo antes de podermos tomar posições para o assalto. E o assalto é necessário
para libertar os prisioneiros, se os há.
Sem Medo ficara com os melhores combatentes. Mesmo assim, havia alguns civis no
meio, ou guerrilheiros que há anos não combatiam. Tenho a impressão que terei de passar ao
assalto sozinho. Talvez só Mundo Novo me acompanhe. Será praticamente um suicídio. A
angústia ganhou-o. Era preciso dispersar os homens pela pequena colina contígua ao rio, subi-la
sem barulho, e só então abrir fogo. Começo a duvidar da seriedade deste plano. Improvisado.
O que vale é conhecermos perfeitamente o terreno. Não me sinto eu, estou demasiado
angustiado, a emoção não é controlada.
Esperando que o grupo do Chefe de Operações ganhasse terreno, Sem Medo pensava.
«Na Europa tive ocasião de jogar em máquinas, onde uma bolinha de metal vai
contando pontos. O jogador só tem de fazer funcionar os «flippers», quando a bola vai sair, ou
encaminhar, com gestos doces, a bola para o sítio mais conveniente. O prazer do jogo não é o
de vencer. É o de se atingir o êxtase, o esquecimento do corpo e do espírito pela concentração
total na bolinha que salta dum lado para o outro e vai somando pontos. Havia momentos em
que sabia que ia ganhar, atingia o estado de graça. Dominava de tal modo a máquina, pela força
da minha tranquilidade, que, de fato, os reflexos eram perfeitos: uma confiança absoluta nos
meus dedos que levemente tocavam os «flippers», nas mãos que orientavam, por movimentos
VOCÊ ESTÁ LENDO
mayombe (Completo)
RomanceA história do livro tem como cenário Angola nos anos 70, período que marca as lutas pela independência do país. No primeiro capítulo intitulado "A Missão", os guerrilheiros no Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) chegam à selva de Mayomb...